Arte pela reconfiguração social Amor-Tecimento (2019), de Renata Felinto (Foto: Cortesia da artista)

Arte pela reconfiguração social

A artista Renata Felinto, vencedora do Prêmio seLecT na categoria Arapuru, discute questões raciais sob múltiplas perspectivas

Leandro Muniz

Em uma série de autorretratos de Renata Aparecida Felinto, a pintura tem um tratamento próximo ao grafitti. Alguns de seus desenhos têm traços delicados, mas retratam a hipersexualização de corpos femininos. Em uma performance de tom crítico, a artista cria um white face (tipo de performance em que uma pessoa negra usa maquiagem teatral para parecer uma pessoa branca)para ironizar os comportamentos afetados de uma elite branca, enquanto em outra, a situação de afeto e contato entre pessoas pretas, busca criar um contexto de autocuidado e cura. A diversidade de recursos formais, de linguagens e posturas – do conforto à acidez – utilizados na produção de Felinto demonstram que o debate racial e suas intersecções no campo artístico estão na ordem do inquieto e do insubordinado, como reflexo de diversas tensões sociais.

História
Nascida em 1978, na Zona Norte de São Paulo e criada na Zona Leste da cidade, Renata Felinto é doutora em artes visuais, testemunha e agente das transformações dos debates sobre raça, gênero e classe no sistema da arte ao longo dos últimos 20 anos. “Estudei na Unesp no final dos anos 1990 e uma das poucas pessoas negras que estudavam arte lá, na época, era a Janaína Barros. Outras pessoas negras não continuaram porque o sistema impede que elas possam acessar esse lugar”, diz Felinto à seLecT.

Estimulada pela família a buscar no estudo uma forma de transformação social, Felinto participou desde a adolescência em diversos cursos de desenho, realizando inclusive um curso técnico na área na ETEC Carlos de Campos, na região do Brás, o que ampliou sua circulação e compreensão da cidade. Na época, a artista fazia fanzines sobre o neonazismo, que era muito forte na São Paulo dos anos 1990.

“As questões raciais não eram uma discussão na minha família como é hoje, porque estava dado que somos pessoas pretas, que ouvem samba, vão em baile black, só se relacionam com pessoas pretas, e até discutem as experiências de racismo que sofrem, mas não do mesmo modo politizado como é hoje, era orgânico”, diz.

Quilombos urbanos
As configurações da cidade também fazem parte de sua formação e produção. “Com o tempo entendi a zona norte como um quilombo tradicional de São Paulo, principalmente para pessoas pretas com fenótipos marcados. Minha família não é parte de nenhuma escola de samba, mas acho que é uma forma negra de viver a vida que faz parte da minha história” continua. “A Zona Leste também é um quilombo, que tem no pagode e no hip-hop formas de expressão. Isso é importante, porque existem as periferias precárias, mas existem várias que são espaços de criação, e estou me referindo inclusive ao Brasil como uma periferia do mundo.”

Em meio às adversidades da cidade e do próprio sistema de arte, as relações entre arte e educação foram não só uma alternativa para a sobrevivência – trabalhando em educativos e depois trilhando uma carreira acadêmica –, mas também sedimentou a compreensão de que o trabalho de arte tem uma dimensão formadora. “Para mim é fundamental pensar arte como educação, como um lugar de criação de novos mundos e reconfiguração social”, afirma. “A carreira acadêmica passou a me interessar também pela possibilidade de liberdade artística, sem precisar me submeter a determinadas situações que são muito violentas para quem quer sobreviver de arte. É uma disputa muito desleal.”

Performar a vida
Desde 2016, Felinto é professora na Universidade do Ceará, no campus do Cariri, adicionando uma nova camada de questões sociais para sua prática e pesquisa: os conflitos culturais. A diferença entre São Paulo e Ceará se manifestam no clima, na incidência da luz, nas formas de vestir, comer e consequentemente na Cultura e na produção artística do local, levando a rever os cânones da história da arte, seus limites e potências em relação àquele contexto. “Fiz uma performance sobre isso, que era basicamente ir abandonando minhas roupas de inverno pela cidade, como uma troca de pele.”

A ideia de “performar a vida” é cunhada pela própria artista em textos e oficinas, como uma ampliação de uma das maiores lições do feminismo negro para a construção do conhecimento em geral: reconhecer as experiências do sujeito em sua compreensão do mundo, conectando biografia, contexto e epistemologias. A cada trabalho, seja em desenho, fotografia ou performance mesmo, Renata Felinto replica ou desconstrói alguma das pequenas violências e contradições implícitas na própria ideia de raça, por vezes com o objetivo de denúncia, por vezes, de cura.

“Ultimamente tem me interessado pensamentos de matrizes africanas fundadas no afeto e no auto-cuidado como forma de combate ao racismo estrutural, considerando desde o que você tem acesso como alimentação, moradia, rede de acolhimento e, claro, cultura.”

Renata Felinto foi contemplada no 3º Prêmio seLecT de Arte e Educação na categoria Arapuru com o trabalho AMOR-Tecimento, oficina com performance que tem por objetivo resgatar o olhar amoroso e empático sobre os corpos de pessoas negras. Foram encontros formativos com culminância em performances, propondo a descolonização da noção pedagógica da arte. “Nosso público alvo inicial são as pessoas negras que passaram e passam por situações traumatizantes de racismo decorrente do processo inserção de sociedades não europeias nas economias do capitalismo”.

O Prêmio Arapuru é uma nova categoria de premiação, criada graças ao apoio da Arapuru Gin e a consciência da marca na necessidade de se viabilizar a arte e a educação no Brasil hoje. Para o desenvolvimento futuro do projeto de Renata Aparecida Felinto, a marca destinará o valor de R$6.000,00, distribuídos periodicamente. Segundo a artista, o prêmio viabilizará uma nova etapa de AMOR-Tecimento.

Literatura fora do eixo Equipe do podcast De Hoje a 8 (Foto: Divulgação)

Literatura fora do eixo

Programa de rádio De Hoje a Oito, vencedor do Prêmio seLecT na categoria Formador, prioriza literatura não canonizada pela elite intelectual

Nina Rahe

Em 2018, quando Eduarda Gama Canto e Andressa dos Prazeres buscavam patrocínio para lançar o primeiro livro de Tianalva Silva, Entre o Rio e a Praça, as duas perceberam que o esforço todo que estavam fazendo para viabilizar a impressão e a circulação do livro seria em vão se nomes como o da escritora cachoeirana continuassem desconhecidos na cena literária. Foi a partir dessa percepção que elas começaram a articular o programa de rádio De Hoje a Oito, vencedor do 3o Prêmio seLecT de Arte e Educação na categoria Formador – o nome do projeto se deve à expressão popular na cidade de Cachoeira (BA) para se referir à semana que vem.

Identidade visual do programa De Hoje a 8 (Foto: Divulgação)

Eduarda, que é estudante de artes na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, e Andressa, pesquisadora e roteirista com formação em letras pela USP, juntaram-se também Letícia Catete, formada em letras pela UFRJ, Edelsio Lima, estudante de artes na UFRB, e o designer Danilo Amaral. “Todos nós temos esse fio de relação com a literatura. A gente lê bastante, escreve também e tem episódios, inclusive, em que colocamos escritos nossos”, diz Eduarda Gama Canto.

Sem contar com nenhum tipo de verba, os cinco conseguiram tirar a ideia do papel por meio de uma parceria com a rádio-poste Olha a Pititinga. O programa literário passou a ir ao ar todas as quintas-feiras, às 17h45, durante os 15 minutos que antecediam a transmissão da Ave Maria. O desafio foi pensar em como atrair o público para algo que seria transmitido no meio da cidade e ouvido por pessoas em trânsito, que estariam saindo do trabalho, desmontando a feira ou esperando para se reunir nos bares com os amigos. “Nossa primeira percepção foi de que não dava para fazer um programa muito longo e pesado porque ninguém iria ouvir”, diz Eduarda. “Queríamos construir um conteúdo mais dinâmico e fomos elencando o que seria importante, como saber como era o processo criativo de cada autor, além de leituras textuais com interações sonoras.”

FORA DO CÂNONE

Estúdio Ibori (Foto: Divulgação)

Os 28 episódios que foram ao ar, de acordo com os idealizadores, “priorizavam a literatura fora do eixo geográfico, racial e econômico canonizado pela elite intelectual que consagra sempre as mesmas narrativas de masculinidade, branquitude e classe média urbana”. Um dos episódios, dedicado ao escritor David Nunes, contou com a leitura do conto Um Malê na Vida, uma história de uma família negra e suas estratégias de superação da morte. Outro trouxe as histórias de Orixás contadas pelo artista Bule-Bule em versos de cordel.

O projeto, que começou apenas na rádio-poste, logo passou a ser disponibilizado em formato podcast – todos estão no Spotify –, mas sua produção acabou consumindo também muito da equipe. Sem recursos, os integrantes precisavam se desdobrar entre a paixão pelo De Hoje a Oito e outros empregos e atividades, o que fez com que o programa fosse interrompido no segundo semestre de 2019. “Fazíamos por amor porque ninguém tirava um centavo. Era cada um da sua casa, todo mundo com computadores ruins. Teve épocas que a gente conseguiu parceria com estúdios, mas era apenas quando eles tinham tempo para a gente”, diz Eduarda.

Agora, com o reconhecimento do Prêmio seLecT, a ideia é garantir a compra de equipamentos que permitam a continuidade do programa, além de alguma remuneração para os envolvidos. “Vai ser interessante retomar o projeto porque a gente tem muita coisa dentro da gaveta, planos de episódios que não demos continuidade porque estava difícil trabalhar sem ganhar nada”, conclui a estudante.

O Prêmio seLecT de Arte e Educação é promovido pela revista seLecT desde 2017 com o objetivo de valorizar escolas, instituições de arte, espaços de ensino, projetos artísticos colaborativos e iniciativas inovadoras que favoreçam os diálogos e os vínculos entre arte e educação. A terceira edição teve correalização do Itaú Cultural, apoio da galeria Almeida e Dale, e parceria da galeria A Gentil Carioca e da Arapuru London Dry Gin.

O livro como ponto de encontro Vaivem Rede Paraná (2019), de Gustavo Cabovo (Fotos: Cortesia do artista)

O livro como ponto de encontro

Vencedor do 3º prêmio seLecT de Arte e Educação na categoria Artista, Gustavo Caboco amplifica a voz do povo Wapichana

Nina Rahe

Gustavo Caboco cresceu ouvindo sua mãe, Lucilene, falar sobre a aldeia Canauanim, em Roraima, que pertence à etnia Wapichana. Nascido e criado em Curitiba, ele escutava com curiosidade as histórias de uma infância com igarapés e frutas como a abacaba, onde a pesca era também brincadeira. Entender a trajetória de sua mãe, marcada pelo deslocamento involuntário, causava certo estranhamento, já que Lucilene deixou Canauanim por volta dos dez anos e passou um período em lares provisórios em Boa Vista e Manaus, antes de ser efetivamente adotada por uma família curitibana. “Essa história sempre me deixou confuso, porque, como criança, eu tentava entender como minha avó de Curitiba, mãe da minha mãe, não era minha avó. Sempre tinha uma outra avó, já que minha mãe passou por muitas famílias”, diz Caboco, que, com o tempo, aprendeu que na cultura indígena o conceito de família é estendido: um avô pode ser considerado também pai, uma tia, mãe, e assim por diante.

O percurso de sua mãe, de acordo com o artista, é narrado por ela a partir de uma adoção que aconteceu em 1968, quando Lucilene foi morar com uma família em Boa Vista (RR), antes de ser enviada para outra em Manaus (AM). Ao retomar essa trajetória, no entanto, o artista escolhe não usar apenas uma palavra, afirmando que “ela foi dada, doada, entregue, adotada, raptada”. “Há várias palavras, dependendo da perspectiva que você olha para a história”, diz. “Minha mãe conta como adoção, mas ela foi trabalhar na primeira e na segunda casa. Por isso uso a palavra rapto. Uma criança indígena trabalhando na sua casa. Que tipo de adoção é essa? É um rapto e um desterro”, questiona.

A única adoção que ele considera como legítima é a de seus avós curitibanos, que decidiram criar Lucilene na época em que ainda moravam em Manaus. A adolescente estava na cidade para trabalhar na casa de uma outra família, mas acabou se tornando amiga de escola da filha do casal, que pediu aos pais para que ela se tornasse sua irmã. “Eles realmente acolheram minha mãe e daí, sim, tornaram-se o que as pessoas entendem como família”.

Vaivem Rede Buriti Bananeira (2019), de Gustavo Caboco

Retorno à terra
O início de toda essa história, no entanto, o artista só chegou a conhecer de fato quando sua mãe decidiu, em 2001, após 33 anos sem regressar à aldeia, retornar ao local para apresentar aos filhos a terra onde cresceu. Na viagem, as imagens, até então construídas apenas na imaginação, puderam ir se cristalizando, já que na sua casa não existiam fotografias nem mesmo dos avós biológicos. Caboco tinha apenas 12 anos quando fez a viagem, mas ela representa o princípio de sua pesquisa atual: a tentativa de conexão com suas raízes indígenas. O “retorno à terra” é o nome dado a seu processo de pesquisa e criação, uma tentativa não só de caminhar para as suas origens, como de amplificar a voz do povo Wapichana.

Na infância, o artista se lembra de amigos que zombavam da sua ascendência na escola e de pessoas que banalizavam o discurso de sua mãe. “Por boa parte da minha vida, acabei silenciando essa história, porque não via muito um lugar pra falar. Quando fui à aldeia, consegui entender minhas diferenças tanto do meu contexto, como do contexto da minha mãe”, diz.

O divisor de águas de sua relação com os dois mundos que o habitam foi a participação no Concurso Tamoios de Textos de Escritores Indígenas, em 2018. Ao ter seu texto A Semente do Caboco selecionado, ele se aproximou de outros expoentes indígenas e começou a querer se aprofundar, cada vez mais, na história de seus familiares, entre eles o tio Casimiro Cadete que, em sua visita à aldeia, fez questão de presenteá-lo com um dicionário wapichana. “Eu vivia em contexto deslocado do circuito indígena, sempre estive à margem, inclusive com muita confusão nesse pertencimento. A própria vida cega a gente de entender a nossa história”, diz Caboco.

Gustavo Caboco (2020)

Livro bilíngue português-wapichana
Apesar de ter voltado a Canauanim só uma vez, em 2019, ele mantém proximidade com sua família indígena, principalmente pelo contato com Roseane Cadete, a prima historiadora, neta de Casimiro, que tem sido uma interlocutora nessa pesquisa. O livro Baraaz Kawau, vencedor do 3º Prêmio seLecT de Arte e Educação na categoria Artista, é fruto dessa aproximação. “Queria fazer uma representação da história, mostrando o lugar, a família, como se fosse uma lembrança que pudesse conversar com qualquer tipo de pessoa”, diz o artista, que vê a publicação como uma ferramenta de cultivo à memória. O livro é composto por cerca de 30 desenhos e textos curtos, escritos nas duas línguas – português e wapichana.  “O livro foi feito para o tio Casimiro e para que as pessoas que estão dentro da própria comunidade também se relacionem com essa memória. É um ponto de encontro”, define.

O artista, que também é um dos selecionados para a 34ª Bienal de São Paulo, adiada para 2021 por conta da pandemia, brinca não ter aberto nem metade dos olhos em relação ao aprendizado sobre suas origens. Mas a participação na bienal, segundo ele, deve ser uma continuidade no longo caminho de retorno à terra Wapichana.

O Prêmio seLecT de Arte e Educação é promovido pela revista seLecT desde 2017 com o objetivo de valorizar escolas, instituições de arte, espaços de ensino, projetos artísticos colaborativos e iniciativas inovadoras que favoreçam os diálogos e os vínculos entre arte e educação. A terceira edição teve correalização do Itaú Cultural, apoio da galeria Almeida e Dale, e parceria da galeria A Gentil Carioca e da Arapuru London Dry Gin.

Arte e educação: relação ou contato Fotos: Divulgação

Arte e educação: relação ou contato

Palestra de Dora Longo Bahia para o Seminário seLecT de Arte e Educação

Dora Longo Bahia

Vou tentar estabelecer aqui uma reflexão sobre as contradições presentes na arte, na educação e na relação – ou contato – entre elas. Vou partir do método dialético para investigar os materiais que produzem algumas dessas contradições, fazendo uso de alguns conceitos filosóficos, que vão ser apresentados aqui de forma rápida, como imagens-conceitos. Contrapondo-os a algumas imagens-imagens espero incitar um debate crítico sobre o assunto.

O termo “dialética” é geralmente usado para descrever um método de argumento filosófico que envolve algum tipo de processo contraditório entre lados opostos. A versão clássica da dialética, é aquela utilizada por Platão.

O filósofo grego apresenta seus argumentos filosóficos por meio de um diálogo ou debate, geralmente entre o personagem de Sócrates, de um lado, e alguma pessoa ou grupo de pessoas a quem Sócrates estava se dirigindo (seus interlocutores), do outro.

Enquanto os “lados opostos” de Platão eram pessoas (Sócrates e seus interlocutores), para o filósofo alemão G. W. F. Hegel, eles dependem do assunto que está sendo tratado.

Os “lados opostos” podem ser definições diferentes de conceitos lógicos que são opostos entre si ou diferentes definições da consciência e do objeto que ela afirma conhecer.

O método dialético hegeliano é posteriormente subvertido por Karl Marx, que propõe um método não apenas diferente do de Hegel, mas exatamente oposto a ele.

No Posfácio à 2ª edição alemã do Capital, Marx explica:

“Para Hegel, o movimento do pensamento – que ele personifica com o nome de Ideia – é o demiurgo da realidade, que não é senão a forma fenomenal da Ideia. Para mim, pelo contrário, o movimento do pensamento é apenas o reflexo do movimento real, transposto e traduzido no cérebro do homem” (MARX, Posfácio à 2ª edição alemã [1863]).

Marx destaca, a despeito do misticismo que denuncia em Hegel, a dialética como núcleo racional de seu pensamento. Vira a dialética hegeliana ao avesso, assumindo o ponto de vista do proletariado como sujeito histórico concreto – portador da possibilidade do devir – e a partir disso elabora sua perspectiva revolucionária.

O fundamento de indeterminação que Marx identifica na classe trabalhadora a capacita a agir pela dissolução de todas as classes e levar as relações sociais à superação do caráter de antagonismo que as define.

Marx passa a caracterizar a dialética não apenas como forma de pensamento que captura o desenvolvimento daquilo que é – como em Hegel – mas como a forma de desenvolvimento da história que, quando capturada pelo pensamento, a torna revolucionária em si mesma.

Adorno e Horkheimer, por sua vez, usam o método dialético para estabelecer uma crítica feroz da sociedade ocidental contemporânea e da relação entre industrialização e arte.

Na Dialética do Esclarecimento, escrita em 1944, durante os anos de exílio nos Estados Unidos, os autores desenvolvem uma teoria social crítica, lendo Marx como um materialista hegeliano, cuja crítica ao capitalismo incluiria inevitavelmente uma crítica às ideologias que o capitalismo sustenta e exige.

A Dialética do Esclarecimento começa com uma avaliação sombria do Ocidente moderno:

“No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal” (ADORNO, 1985, p. 17).

Adorno e Horkheimer apresentam então uma reflexão sobre essa contradição.

Como o progresso da ciência moderna, da medicina e da indústria pode prometer libertar as pessoas da ignorância, das doenças e do trabalho brutal e alienante e, ainda assim, ajudar a criar um mundo onde as pessoas engolem voluntariamente a ideologia fascista, praticam deliberadamente múltiplos genocídios e produzem incansavelmente armas letais de destruição em massa?

A razão, os autores respondem, tornou-se irracional.

Um ano após a morte de Adorno, em 1970, uma série de ensaios sobre arte, escritos por ele entre 1961 e 1969 foram publicados sob o título de Teoria Estética. O texto reconstrói o movimento da arte moderna a partir da perspectiva da reflexão estética, realizando uma dupla reconstrução dialética que tenta extrair o significado sócio-histórico da arte e da filosofia discutidas. O livro começa e termina com reflexões sobre o caráter social da arte.

Para isso, Adorno retém de Kant a noção de que a arte é caracterizada por sua “autonomia” formal, combinando a ênfase kantiana na forma, com a ênfase hegeliana na importância intelectual e com a ênfase marxista na imersão da arte na sociedade como um todo.

O resultado é um relato complexo da simultaneidade entre o caráter necessário e ilusório da “autonomia” da obra de arte, que, por sua vez, é a chave para o caráter social da arte, ou para que esta seja “a antítese social da sociedade” (ADORNO, 1970, p. 19).

Adorno considera as obras de arte autênticas como “mônadas sem janelas” (ADORNO, 1970, p. 16) cujas tensões expressam conflitos inevitáveis dentro do processo sócio-histórico do qual surgem e ao qual pertencem.

Essas tensões integram a obra de arte por meio da luta do artista com materiais historicamente carregados e evocam interpretações conflitantes que, muitas vezes, acabam confundindo as tensões internas da obra com sua conexão com os conflitos sociais.

Mas a obra de arte não é apenas contraditória em relação a sua “autonomia”. Segundo o também filósofo Walter Benjamin, ela tem um aspecto dialético que desempenha um papel político vital: a desmistificação mútua entre a realidade material e a expressão estética.

Por um lado, a arte requer elementos da história material para sua interpretação, para que os “tesouros” culturais deixem de ser apetrechos da classe dominante. Por outro lado, fornece uma iconografia crítica para decifrar essa mesma história material, de maneira que seus elementos possam ainda constituir uma “constelação revolucionária com o presente” (BUCK-MORSS, 2005, p. 40).

A relação dialética entre realidade material e expressão estética – vulgarmente conhecidas como “vida e arte” – também é recorrente na reflexão sobre arte, pelo menos desde as vanguardas históricas.

Em sua fase inicial, a Internacional Situacionista (I.S.), formada em 1957 por um grupo de intelectuais e artistas, propunha a superação da arte a partir de seu próprio interior, numa simultaneidade de destruição e realização.

No entanto, as contradições logo se mostraram irreconciliáveis. As desavenças entre os artistas dentro da I.S. tornaram-se cada vez mais evidentes e o grupo em torno de Guy Debord – seu líder mais ilustre – concentrava todos os seus esforços na produção teórica e no comprometimento organizacional.

As divergências entre os integrantes da I.S. aumentaram de tal forma que levaram à exclusão forçada ou à saída voluntária de todos os artistas. A partir de 1962, uma versão reorganizada e recomposta do grupo manifestava seu interesse na arte, apenas com relação aos limites de sua superação na forma de uma revolução social.

Num contexto em que a aceleração do tempo de giro do consumo e a superação das barreiras espaciais fizeram com que a sociedade do espetáculo descrita por Debord se disseminasse por todo o “mundo civilizado”, as imagens e sistemas de signos – sejam eles conformistas ou “subversivos” -– se tornaram a “mercadoria” ideal para a acumulação do capital.

A arte – assassinada e “superada” diversas vezes desde o romantismo – parece um zumbi delirante. Ela vagueia em meio à montanha de imagens-mercadorias produzidas pela indústria cultural, tentando ocupar a posição crítica que possuía até meados do século XX. Assume a interferência do mundo a que se refere, procurando afirmar-se como um campo confuso de intersecção entre diferentes planos contraditórios de discurso – sejam eles estéticos, éticos, teóricos, históricos ou políticos.

Mais contradições aparecem com relação à posição que o artista ocupa na sociedade contemporânea. Já em 1970, a crítica de arte norte-americana Lucy Lippard (1937) chama a atenção para a frustração do artista ao correr “de cima para baixo entre a torre de marfim e as ruas”, num movimento esquizofrênico entre as instituições e a realidade material (LIPPARD, 1986, p. 189).

Até meados do século passado, o artista, mesmo quando imerso nas jogadas de poder, tinha duas alternativas: ou fazer um jogo a partir das exigências de seus poderosos patronos – tornando-se um “pintor da corte” – ou adotar uma posição marginal e vanguardista.

Hoje, toda “novidade” artística já surge obsoleta, como resultado de uma corrida frenética e infrutífera contra um mercado inelutável que transforma tudo em mercadoria.

Mesmo as atitudes, experiências e ações artísticas ditas “marginais” são rapidamente anuladas por meio da corporificação e mercantilização da obra e do artista, ou esvaziadas por meio da sua espetacularização. Pelo simples fato de existirem, tornam-se tão mercadoria quanto uma pintura ou escultura tradicional.

O “artista marginal” acabou por desaparecer como uma figura específica, uma vez que a atitude perceptual que ele anteriormente incorporava agora impregna a consciência histórica.

Mesmo que o artista ainda tente buscar a “marginalidade” perdida, ele precisa estar ciente das articulações da arte com as instituições do poder, sejam elas o Estado – que estabelece o que é digno de se tornar cultura nacional –, a mídia – que decide o que é verdade, o que é pós-verdade e o que não é nenhuma das duas –, ou o poder econômico privado ou corporativo representado pelos colecionadores, investidores e instituições – que decidem quem integra as grandes coleções, exposições, festivais etc

Essas articulações são inevitáveis, já que a arte, pelo menos desde a Idade Média, mantém relações cordiais com o poder – incorporado primeiro pela igreja, depois pela aristocracia, pela burguesia e, mais recentemente, pelas corporações.

Por causa disso tudo – da mesma forma que políticos e cientistas – os artistas são responsáveis tanto por suas obras quanto por suas implicações públicas.

Por outro lado, toda ação artística envolve também uma zona de irresponsabilidade, já que não deixa de ser um “ato de risco”.

Assim como o ato político radical, a prática artística é “uma intervenção específica num contexto sócio-simbólico” que, apesar de sempre estar situada num contexto concreto, não é inteiramente determinada por ele.

Este “ato” sempre envolve um risco radical, já que “é um passo no desconhecido”. Ele não tem nenhuma “garantia quanto ao resultado final” porque pode alterar “retroativamente as próprias coordenadas em que interfere” (ZIZEK, 2003, p. 75).

Para que a comparação entre o ato político radical e a ação artística não seja muito superficial ou ingênua, proponho pensar a relação entre eles em duas chaves.

A primeira seria na chave daquilo que o filósofo esloveno Slavoj Zizek descreve como paralaxe:

“A paralaxe não é simétrica, composta de dois pontos de vista incompatíveis do mesmo X: há uma assimetria irredutível entre os dois pontos de vista, uma torção mínima. Não temos dois pontos de vista, temos um ponto de vista e o que foge a ele, e o outro ponto de vista preenche o vazio do que não podemos ver do primeiro ponto de vista” (ZIZEK, 2008, p. 47).

Arte e política seriam, portanto, irredutíveis entre si, relacionando-se apenas por meio de um desvio em que uma preencheria a lacuna deixada pela outra.

A segunda chave para se associar arte e política sem incorrer em chavões superficiais, seria eliminar de vez a relação entre elas e desvelar aquilo que outro filósofo contemporâneo, o italiano Giorgio Agamben, chama de “contato” (AGAMBEN, 2017, p. 304).

Segundo ele, o espaço da política é delimitado por pares de elementos – o poder e a vida nua, a casa e a cidade, a violência e a ordem instituída, a anomia e a lei, a multidão e o povo. Esses pares de elementos se constituem reciprocamente por meio de sua relação de oposição.

Entretanto, essa mesma relação que os une os pressupõe, ao mesmo tempo, como não relacionados. A relação tem assim um papel ontológico essencial pois nela se expressa a própria estrutura que pressupõe a linguagem, uma relação primordial entre o ser e seu dito ou nomeado.

Agamben conclui que o acesso a uma figura diferente da política – que é um problema da maior urgência para o mundo contemporâneo – teria que ter a forma daquilo que ele chama de uma “potência destituinte” (AGAMBEN, 2017, pp. 295-310), isto é, daquilo que coloca em questão o próprio estatuto da relação, que confronta-se com o ser frágil que é a linguagem, tão difícil de conhecer e captar.

Uma “potência destituinte” seria aquilo que, abandonando as relações ontológico-políticas, possibilitasse o aparecimento de um “contato” definido unicamente por uma ausência de representação.

Segundo Agamben, onde uma relação for destituída e interrompida, seus elementos estarão em contato, não há nada entre eles, apenas o vazio que ocupa o lugar do vínculo que tinha a pretensão de mantê-los juntos – mas ao mesmo tempo separados (AGAMBEN, 2017, p. 304).

Nesta chave, a “relação” entre arte e política seria então eliminada.

Para Agamben, a prática artística se tornou o lugar em que a problemática envolvendo a identificação entre a existência humana e um certo modo de vida é demonstrada.

Se, na antiguidade a atividade do artista era definida exclusivamente por sua obra e ele tinha um caráter “residual” com relação a ela, na modernidade é a obra que constitui um resíduo incômodo da atividade criadora e do gênio do artista (AGAMBEN, 2007, p. 276).

Ao tentar se definir pela própria operação, o artista moderno está, de fato, condenado a permutar a própria vida com a própria operação e vice-versa.

“Se a prática artística é o lugar em que se faz sentir, com maior vigor a urgência e, ao mesmo tempo, a dificuldade da constituição de uma forma-de-vida, isso se deve ao fato de que nela se conservou a experiência de uma relação com algo que excede a obra e a operação e, mesmo assim, continua sendo delas inseparável” (AGAMBEN, 2007, p. 277).

Segundo o filósofo italiano, uma forma-de-vida não é definida por uma práxis ou por uma obra, mas sim por uma potência e por uma inoperosidade, isto é, o modo em que o ser se mantém em contato com uma potência pura, em que vida e forma, privado e público, entram num limiar de indiferença.

Um artista não é, portanto, o sujeito soberano de uma operação criadora ou de uma obra, mas sim um ser anônimo que torna as obras da linguagem inoperosas.

Ele não é o autor da obra (no sentido moderno, essencialmente jurídico do termo) nem o proprietário da operação criativa, que são apenas resíduos subjetivos resultantes da constituição da forma-de-vida.

Para Agamben, esta não pode se reconhecer ou ser reconhecida porque é antes de tudo a articulação de uma “zona de irresponsabilidade”, em que as identidades e as imputações do direito estão suspensas (AGAMBEN, 2017, pp. 277-278).

Mas como pode haver lugar dentro das escolas – dos museus e das instituições – para essa articulação de “zonas de irresponsabilidade”? Como uma instituição de ensino pode estimular um aluno a tomar posições irresponsáveis e ao mesmo tempo exigir que ele respeite as regras? Como oferecer um território para a investigação das fendas e dobras no sistema, estimulando iniciativas de risco que explicitem as contradições do fazer artístico sem provocar a ira de setores conservadores da sociedade?

A partir dessas colocações fica claro que a formação do artista também  é contraditória. Em que momento o artista “está formado”? Será que ele não é justamente o desforme, o informe ou o deformado da sociedade?

Para discutir o conceito de “formação” em arte no contexto brasileiro, acho importante citar o escritor Antonio Candido e seu livro Formação da Literatura Brasileira, de 1959. Candido define a literatura – a arte – como

“uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal da linguagem, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela, se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração” (CANDIDO, 1972, pp. 803-809).

Em seu livro de 1959, refere-se à Formação da literatura como fundação, desenvolvimento e consolidação de um “sistema literário” (não de um escritor ou de um escrito), isto é, da articulação entre autor, obra e público, com continuidade histórica (tradição). Literatura é esse sistema articulado que exclui manifestações isoladas e sem ressonância.

(Foto: Divulgação)

No caso do Brasil, o “sistema literário” teria se constituído plenamente com o surgimento de Machado de Assis. A partir de então, a Formação teria chegado a seu auge, passando a existir uma Literatura Brasileira.

Os conceitos propostos por Antonio Candido passam a funcionar como termômetro para a crítica literária local, na medida em que contribuem para a avaliação das obras e ajudam a apontar quais seriam os autores que passariam a fazer parte desse “sistema”.

Para Candido, esses autores são aqueles que pensam a sociedade a partir da literatura. A análise apresentada em seu livro foi extremamente importante pela criação tanto de paradigmas para a crítica literária local, quanto de sistemas antagonistas a eles.

O poeta Haroldo de Campos, por exemplo, discordava das afirmações de Candido, considerando-as apenas um “construto teórico baseado numa lógica de exclusão e inclusão de textos”. Segundo ele, o ponto de vista apresentado em Formação da Literatura Brasileira é problemático por basear-se numa “concepção metafísica da história, marcada por uma linearidade evolucionista” (POLÊMICA, 2019).

No contexto atual, em que o fluxo transnacional do capital, a contaminação cultural, as redes sociais e os sistemas complexos – originados de padrões simples1 –determinam novas relações de tempo-espaço, qualquer construção vertical e historicista torna-se arbitrária ou mesmo alienada.

Qual seria então a opção para uma formação que não fosse marcada por uma linearidade evolucionista?

Segundo outro filósofo contemporâneo, Alain Badiou, a educação é uma mediadora entre filosofia e arte. A arte produz verdades – assim como a política, a ciência e o amor – que são desveladas pela filosofia com intermediação da educação.

Em Pequeno Manual da Inestética, Badiou discorre sobre esse entrelaçamento entre arte, filosofia e educação por meio de três esquemas – didatismo, romantismo e classicismo.

“No didatismo, a filosofia entrelaça-se com a arte na modalidade de uma vigilância educativa de seu destino extrínseco ao verdadeiro. No romantismo, a arte realiza na finitude toda a educação subjetiva da qual a infinidade filosófica da ideia é capaz. No classicismo, a arte capta o desejo e educa sua transferência pela proposta de uma aparência de seu objeto. Aqui, a filosofia só é convocada enquanto estética – dá sua opinião sobre as regras do “agradar” (BADIOU, 2002, pp.15-16).

Para o filósofo, os três esquemas foram saturados durante o século XX e acabaram produzindo uma espécie de “desenlaçamento dos termos, um desrelacionamento desesperado entre a arte e a filosofia”, bem como o desaparecimento puro e simples do que circulava entre elas: a educação (BADIOU, 2002, p. 18).

A arte – assim como a política, a ciência e o amor –

“educa simplesmente porque produz verdades e porque “educação” jamais quis dizer nada além do seguinte – a não ser nas montagens opressivas ou pervertidas: dispor os conhecimentos de tal maneira que alguma verdade possa se estabelecer…” (BADIOU, 2002, p. 21).

E na prática? Qual é a verdade estabelecida por meio dos conhecimentos dispostos nas escolas de arte?

Nelas, os estudantes estudam as estratégias de inserção no mercado, os procedimentos “revolucionários”, as técnicas tradicionais e as determinações históricas, aprendendo a ser “jovens artistas”.

O termo “jovem artista” – de uso frequente em editais, programas de residência e textos de apresentação de exposições ou projetos curatoriais – significa muito mais do que um período na vida de alguém que faz arte.

Não é simplesmente a mesma coisa que o “artista quando jovem” de James Joyce.

Este último é descrito no primeiro romance do escritor irlandês, Retrato do Artista Quando Jovem de 1916, em que ele narra a “formação” de seu alter ego Stephen Dedalus. Conforme o personagem amadurece, Joyce muda o estilo do texto, construindo um espelhamento entre conteúdo e forma.

O livro é considerado um romance de “formação”, ou seja, um romance em que se expõe o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de um personagem, que nesse caso se confunde com o do próprio autor.

Enquanto o termo “o artista quando jovem” é uma denominação retroativa que pressupõe a existência de uma obra feita por alguém que faz arte (o artista), a nomenclatura “jovem artista” prescinde da obra. Ela estabelece uma categoria que existe antes da arte, uma aposta que pode dar certo (valorizar) ou não.

As escolas de arte lançam “jovens artistas” na mesma frequência que as grandes lojas lançam suas novas coleções.

Surgem então os “jovens-artistas-mercadoria” que abastecem a demanda capitalista pelo “novo-sempre-igual”2. A verdade que se estabelece nas escolas de arte é, portanto, a prevalência total do fenômeno que Marx chamou de fetichismo da mercadoria:

“Todos os objetos e todos os atos são iguais enquanto mercadorias. Eles não são nada além de quantidades maiores ou menores de trabalho acumulado e, portanto, de dinheiro. É o mercado que realiza essa homologação, para além das intenções subjetivas dos autores. O reinado da mercadoria é terrivelmente monótono e até mesmo sem conteúdo. Uma forma vazia e abstrata, sempre a mesma, uma pura quantidade sem qualidade – o dinheiro – se impõe pouco a pouco à multiplicidade infinita e concreta do mundo” (JAPPE, 2012).

A relação entre arte e educação desvela, portanto, uma gama de contradições não resolvidas. Isto acontece porque ambas estão em “contato” com a política, a ciência e o amor, trazendo à tona a memória de uma série de interrupções ambíguas, o déjà-vu de uma revolução esquecida, apagada, que nunca terminou de se realizar porque se emaranha e se confunde com as estruturas sociais do capitalismo (MEDINA, 2010).

Como dispor conhecimentos de maneira que a “verdade” da arte se estabeleça?

Talvez possamos começar tentando criar condições para o aparecimento de zonas de irresponsabilidade.

Zonas em que as divisões hierárquicas do perceptível sejam refutadas, a política seja substituída por uma configuração do mundo sensível e a esperança da emancipação mantenha-se no horizonte (RANCIÈRE, 2005).

Essas zonas de irresponsabilidade podem vir a instaurar fendas e dobras no sistema que só vão poder ser identificadas retroativamente e que, nesse movimento, vão alterar as próprias coordenadas em que surgiram.

Podem fazer emergir promessas de realização de um novo mundo, fundamentadas na negatividade que se espalha na violência contraditória da contemporaneidade (BENOIT, 2004) e que por isso são impossíveis de serem satisfeitas no presente.

Algumas dessas promessas poderão ser chamadas de arte. Ou de política. Ou ainda de educação.

 

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Tradução: Artur Mourão. Lisboa: Edições 70 Ltda, 1970.

–––––– ; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução: Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

AGAMBEM, Giorgio. O uso dos corpos [Homo Sacer, IV, 2]. Tradução: Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2017.

BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. Tradução: Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

BENJAMIN, Walter. “Central Park”. Tradução para o inglês: Lloyd Spencer. In: New German Critique 34, Winter 1985.

BENOIT, Alcides Hector R. “As raízes (gregas) do Brasil”. In: Contravento. Volume 2, Novembro, 2004.

BUCK-MORSS, Susan. Walter Benjamin: escritor revolucionário. Tradução para o espanhol: Mariano López Seoane. Buenos Aires: Interzona Editora S.A., 2005.

CANDIDO, Antonio. “A literatura e a formação do homem”, em Ciência e Cultura, São Paulo, v. 24, pp. 803-809, 1972.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas em Epítome. Vol. I. Tradução: Artur Mourão. Lisboa: Edições 70 Ltda., 1969.

JAPPE, Anselm. “Fin de la révolution et fin de la fin de l’art?” In: Desformas: Sessão Especial / A formação e a Espada, São Paulo. Trabalho não publicado, 2012.

JOHNSON, Steven. Emergência: a vida integrada de formigas, cidades e softwares. Tradução: Maria Carmelita Pádua Dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

JOYCE, James. Retrato do artista quando jovem. Tradução: José Geraldo Vieira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

MARX, Karl. O Capital: Livro 1. Posfácio à 2ª edição alemã (1863). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/ocapital-v1/prefacioseposfacios.htm. Acesso em: 11 de Jul. 2019

MEDINA, Cuauhtémoc. “Contemp(t)orary: eleven theses”. In: E-flux journal, no 12, janeiro 2010. Disponível em: http://worker01.e-flux.com/pdf/article_8888103.pdf. Acesso em: 11 de Jul. 2019.

POLÊMICA Antonio Candido x Haroldo de Campos. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo6163/polemica-antonio-candido-x-haroldo-de-campos. Acesso em: 11 de Jul. 2019. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Tradução: Mônica Costa Netto. São Paulo: Exo/Editora 34, 2005.

ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. Tradução: Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.

––––––. Bem-vindo ao deserto do real! Tradução: Paulo Cesar Castanheira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

O novo homem Luis Camntizer no 3º Seminário seLecT

O novo homem

Em texto para o 3º Seminário de Arte e Educação, Luis Camnitzer recontextualiza comentários de Che Guevara sobre relações entre arte e sociedade

Luis Camnitzer

Por bem ou por mal, Che Guevara influenciou fortemente minha geração. Nunca usei uma camiseta com a imagem dele, mas prestei atenção em alguns de seus artigos e fiquei particularmente interessado quando ele falou sobre arte. Isso não acontecia com frequência, mas em “Socialismo e o Novo Homem” (sic), escrito em 1965, ele deu suas opiniões sobre o papel dos artistas na sociedade capitalista. É uma visão que em parte parece ser verdadeira mais de meio século depois, mas também com ideias que parecem românticas ou inaplicáveis, embora ainda sejam usadas hoje.

Che observou, por exemplo, que a arte e a cultura no sistema capitalista existem como uma defesa contra a “morte diária durante oito horas ou mais em que [o homem] trabalha como mercadoria, para depois ressuscitar em sua criação espiritual”, e também que a arte é uma defesa da individualidade em que as ideias estéticas contribuem para a sensação de ser único e imaculado. Tudo isso, segundo ele, é uma forma de escapar da qualidade insuportável do ambiente. R.D. Laing expressou pensamentos semelhantes alguns anos depois, quando escreveu: “Palavras em um poema, sons em movimento, ritmo no espaço, tentativa de recapturar o significado pessoal no tempo e no espaço pessoais a partir das imagens e sons de um mundo despersonalizado e desumanizado. São cabeças de ponte em território estrangeiro. São atos de insurreição.” Embora a arte e a cultura possam servir para isso, seria um exagero limitá-las a essa função.

Mais curiosamente ainda, falando sobre o artista profissional, ele escreve:

“A superestrutura força uma arte na qual os artistas devem ser educados. O maquinário subjuga os rebeldes, e apenas talentos excepcionais podem criar um trabalho próprio. O resto se torna mercenário ou é esmagado.” “A pesquisa artística é inventada para definir a liberdade, mas essa pesquisa tem limites perceptíveis apenas quando nos chocamos com eles, ou seja, quando são levantados os problemas reais do homem e sua alienação. Angústia sem sentido e passatempo trivial tornam-se válvulas de escape para o mal-estar humano: a possibilidade de uma arte de denúncia está descartada.” “Aqueles que seguem as regras recebem as homenagens; assim como poderia receber um macaco inventando piruetas. A condição é não tentar escapar da jaula invisível.”

O conceito de jaula foi posteriormente reformulado de forma incisiva por Stephen Wright em 2013, quando ele comentou: “É claro que a arte autônoma afirma regularmente que morde a mão que a alimenta; mas nunca com muita força”.

A arte não estava no topo da lista de solução de problemas de Che, e o texto do “Novo Homem” talvez contenha suas menções mais explícitas. O interesse em citá-lo aqui é porque a relação entre arte e sociedade não mudou muito no último meio século, e é revelador ouvir alguém imerso em combate político que não tem opiniões ignorantes nem dogmáticas sobre as coisas. Dependendo do ponto de vista da pessoa, a descrição de Che do artista e como os artistas se encaixam na sociedade pode ser essencialmente considerada correta, embora sua crítica ao Realismo Social e à “arte pela arte” tenha perdido relevância. Para ele, o Realismo Social é uma forma de evitar a pesquisa artística ao combinar um presente socialista com um passado estético. Ele prosseguiu, alegando que “não se pode opor realismo social a ‘liberdade’, porque isso ainda não existe e não existirá até que haja uma nova sociedade. […] Falta o desenvolvimento de um mecanismo ideológico-cultural que permita a pesquisa [artística] […].”

É aqui que Che (assim como as pessoas que pensam parecido) parece mais limitado. A arte bem empregada passa a ser o mecanismo ideológico-cultural exato necessário para uma nova sociedade livre. Ele não considerou essa possibilidade porque estava navegando pelas limitações de uma arte política baseada no conteúdo narrativo, em vez de se basear na ação. Embora estivesse tentando abrir perspectivas, ele acreditava na separação disciplinar de tarefas. Nesse sentido, o pensamento político teria papel de vanguarda e atuaria separadamente de tudo o mais. A arte estava lá para oferecer experiências e visualizar os esforços. A arte só poderia funcionar livremente enquanto os desdobramentos políticos criassem o ambiente adequado para ela. No mesmo texto, Che se queixa: “Não há artistas de grande autoridade que também tenham grande autoridade revolucionária”. Embora fosse verdade, o problema era que tampouco havia políticos com grande autoridade que também tivessem grande autoridade artística.

Che não considerou a possibilidade de que a arte pudesse ser usada para construir a liberdade que ele considerava ausente. Ou que qualquer revolução que pudesse ocorrer sem arte revolucionária e política revolucionária seria apenas parcial e, portanto, malsucedida. A política e a arte precisam trabalhar de mãos dadas a ponto de serem a mesma coisa, não apenas se ilustrarem. Na verdade, é aí que a arte se torna o componente educacional que pode redirecionar a estratégia política para ser pedagogicamente eficaz e ajudar no surgimento do “novo homem”.

Curiosamente, na mesma época que Che escrevia seu texto e mencionava a “pesquisa artística”, havia um desejo incipiente de promover a mudança para se entender a arte não como um meio de produção, mas como uma forma de processamento do conhecimento. A arte conceitual hegemônica se afastou da arte materializada e introduziu a solução de problemas, com a arte conceitualista na periferia, adicionando resistência política à mistura. O problema é que, a partir daí, os dilemas da autonomia mudaram sem serem totalmente resolvidos. Hoje trata-se de onde essa autonomia deve ser colocada, se é nos domínios do “capital cognitivo” ou da educação, com a alfabetização e a enumeração, e também quem deve ser servido por ela.

Na época de Che, seguindo sua tradição de ser artesanal, a arte era uma habilidade autônoma ou a serviço de algo. A questão de “a quem servia” era separada e reservada à análise ideológica. Hoje, a autonomia só pode ser discutida seriamente se for feita considerando todas as implicações e de uma maneira extremamente matizada. Temos que tentar entender como a mesma palavra acomoda instrumentos financeiros, frases de efeito visual espetacular, pesquisa séria na solução alternativa de problemas, construção de significados, serviço de classe e arte como prática social.

O conceito de arte de Che era mais simples e característico para pessoas fora dos círculos artísticos. Uma visão esquemática ainda estava imersa na dicotomia abstração/figuração prevalente na América Latina nos anos 1950, quando a abstração representava tanto a autonomia quanto a utopia modernista. A política deveria ser representada no conteúdo narrativo da obra de arte, algo muito mais fácil de se fazer com a figuração. Colocado desta forma, pode-se pensar que todas essas opções são ou/ou, em que uma escolha exclui todas as outras e aquelas descartadas são jogadas em uma lixeira intelectual.

Hoje pode-se dizer que nenhuma dessas reflexões sobre figuração e mensagens políticas importa muito. Mesmo que essas diferenças permanecessem relevantes, algumas delas poderiam acabar tendo um efeito cultural e muitas, não. Pode-se confiar que, se deixarmos a arte apenas acontecer como um ofício aprimorado ou como uma contribuição ao conhecimento e sem interferência racional ou orientação, ela encontrará sua própria maneira de afetar a sociedade e se instalar na cultura coletiva. Historiadores e antropólogos em um futuro distante avaliarão, então, o que realmente aconteceu. Parece, entretanto, que nesse ínterim nós trabalhamos pelo presente, e ainda é nossa responsabilidade fazer o melhor possível, uma vez que somos responsáveis por aqueles que vivem ao nosso redor.

A referência de Che à arte começa afirmando: “É na área das ideias que levam a atividades improdutivas que fica mais fácil ver a divisão entre as necessidades materiais e espirituais”. Segue-se a noção ainda predominante hoje de que arte é uma atividade de lazer. Não importa que aspecto conformando a palavra “arte” possamos escolher, ao vê-la como um meio de produção de objetos tangíveis inúteis, os resultados de alguma forma sempre recaem na área da apreciação. Devemos olhar para a arte, entendê-la e, possivelmente, apreciá-la, mesmo que não gostemos. Consequentemente, a educação artística é claramente dividida em cursos que ensinam como fazê-la e os que ensinam a apreciá-la. O bom “fazer” pode, por fim, levar a escolas de arte especializadas, com bom apreço por todas as diferentes indústrias que giram a seu redor e apoiando os produtos da arte. Em outras palavras, o foco está nas diferentes formas de como a arte apresenta sua instrumentalização, mesmo que, comparada a outras indústrias, seu nível de aplicabilidade seja baixo.

Esse foi o problema que Che enfrentou quando viu a arte como uma ferramenta para o resgate espiritual da exploração capitalista e como algo carente de liberdade em uma sociedade que começava a tornar possível a liberdade de seus cidadãos. Ele não pensou na possibilidade de ter a arte como forma de cognição ajudando nessa tarefa. Ele tampouco descreveu o que a arte poderia fazer ou parecer uma vez que a liberdade fosse alcançada. O primeiro descuido foi uma pena e o segundo, sorte. Dentro de seu conceito de arte, qualquer definição teria negado a liberdade que ele esperava.

Em vista do fracasso das revoluções políticas do século XX, a questão da função social da arte é de crescente interesse e importância. Assim como o foco em para que ela é utilizada, que é um conceito tido como certo em todos os sistemas sociais ocidentais. Deve haver um propósito prático em tudo o que fazemos, caso contrário, é luxo ou lazer. Isso condicionou o sistema educacional, fazendo-o mudar cada vez mais para a praticidade, eliminando as humanidades e as artes dos currículos e tendo que lidar com a questão de como essa coisa inútil que chamamos de arte pode ser quantificada e utilizada de forma prática. Nas sociedades capitalistas, nos últimos anos, essa inutilidade evoluiu e adquiriu valor de investimento. Os cursos de administração e consultoria artísticas estão proliferando. Na medida em que a arte é mantida nos currículos – e a maioria dos artistas hoje tem formação universitária –, os cursos de negócios e as habilidades de sobrevivência estão se tornando uma parte fundamental da formação do artista.

As galerias costumavam seguir o modelo antiquado de mercearia. Costumava-se ir à loja e comprar o que se gostasse ou precisasse. Depois de um período no formato supermercado, aperfeiçoou-se com a apresentação no estilo de feira de arte. O poder da galeria está cada vez mais concentrado nas mãos das megagalerias transnacionais, que funcionam como corretoras para mais de cem artistas cada uma. Negócios sérios de arte tornaram-se transações realizadas em papel, com certificados de autenticidade e propriedade trocados enquanto a própria arte permanece armazenada em depósitos à prova de intempéries climáticas. Enquanto isso, a pesquisa artística avança para o nível de doutorado, tornando o grau terminal mais caro, inatingível e elitista.

A inutilidade do consumo contemplativo torna-se útil por meio da economia do lazer construída em torno dele. Na arte, a “experiência” tornou-se a mercadoria que gera renda para quem tem condições de ter lazer. O processo, entretanto, não se limita ao lazer, passando a fazer parte da maioria das transações comerciais. Foi teorizado no que é chamado de “a economia da experiência”. As pessoas não trocam mais de marcas e lojas por falta de qualidade, mas pela experiência ruim ou despersonalizada proporcionada durante o processo de compra. Os clientes estão dispostos a pagar mais por um serviço eficiente e agradável em detrimento da qualidade dos produtos reais. Portanto, não é mais a obra, mas a experiência da obra que deve ser memorável. A memorabilidade da experiência é reforçada pelo espetáculo oferecido para contextualização. As pessoas então não olham para a obra, mas tiram selfies para registrar que a experiência aconteceu.

Essa situação gerou algumas resistências que se concretizaram na “arte como prática social” (incluindo a ação política) e algumas formas de pesquisa artística. Che teria apreciado ambos os aspectos, embora não correspondessem exatamente às suas expectativas. A prática social apresenta uma tendência populista e trabalha para melhorar criativamente as condições de vida na sociedade. A pesquisa artística é voltada para introduzir metodologia e teoria rigorosas no fazer artístico, atendendo principalmente ao campo da arte. O que é interessante, no entanto, é que, embora não tenham um impacto radical, esses movimentos levaram a mostrar o verdadeiro papel cultural da arte. Arte não tem a ver com objetos tangíveis, mas com uma metodologia de abordagem do conhecimento, às vezes usando objetos para esse fim, e com “criar significados”.

A “criação de significados”, entretanto, tem duas interpretações. Uma é usada na pedagogia construtivista entendida como “dar sentido” às coisas, ao colocar ordem na desordem ou ordem mal compreendida. A outra interpretação, mais ambiciosa, vai além e quer usar a arte para gerar “novos” significados. É esta que Che havia perdido. Poderia tê-lo ajudado na construção de sua utopia, o que levanta outro problema. Se criar novos significados fosse útil para construir utopias, seria contraproducente, uma vez que uma utopia não tem espaço para novos significados.

Esse foi um erro típico de muitos na geração de Che e na minha (ele era apenas nove anos mais velho que eu). Eu tive minhas próprias visões da utopia e sabia como a sociedade deveria ser. Isso me levou a me interessar por outro pensamento utópico. Aceitei alguns e rejeitei outros de acordo com a forma como combinavam com minhas crenças. Todos concordamos que o Mundo não estava funcionando e que fomos designados para melhorar a situação. O fato de estarmos onde estamos e de todas as pessoas no poder que poderiam ter ajudado a melhorar a situação serem mais jovens que eu mostra o grau de nosso fracasso. No entanto, a Utopia ajudou-me a “fazer sentido”, e usei-a na interpretação pedagógica do termo. Fazer sentido foi uma forma de pensamento crítico que ajudou a recontextualizar e rearticular meu entorno, bem como escolher as ferramentas mais adequadas para isso. Foi a sensação de que compartilhar essa utopia era socialmente útil que me fez enfocar na educação. Ao mesmo tempo envolvido em estudos de arte, trabalhei com o que aprendi lá, mas o fiz dentro das visões convencionais sobre as divisões disciplinares.

A arte nos anos 1950 era considerada um sistema de produção independente, um conjunto de ofícios com algo extra que não podia ser claramente definido. Esse extra permitia aos artistas desabafar, expressar e às vezes chocar. O desabafar tinha valor terapêutico, expressar-se ajudava na comunicação, e chocar podia ser usado para se tornar famoso ou para aumentar a conscientização. Todos os três aspectos poderiam ser calibrados para levar a sociedade a me aceitar como um grande artista ou a construir minha utopia. O fato de que qualquer uma das possibilidades seria um sinal de arrogância narcisista nem me ocorreu. O mesmo afetou meu trabalho como professor. Embora acreditasse na sala de aula horizontal, referia-me à educação como ensino, o que minava seriamente minhas teorias cuidadosamente elaboradas.

Com o passar dos anos, corrigi muitas dessas falhas. O “fazer arte” tornou-se “pensar arte” e solução criativa de problemas. “Ensinar” tornou-se trabalho em equipe e “aprender juntos”. A separação entre arte e educação tornou-se cada vez mais nebulosa, a tal ponto que hoje não vejo uma razão clara para separá-los em duas disciplinas distintas. Um ponto, porém, permaneceu problemático. Um de meus filhos me desafiou a explicar o que estava por trás das palavras “combinava com minhas ideias”.

Era algo muito simples: “combinar com minhas ideias” favorece um sistema estático construído no passado e força o futuro a se encaixar nele. A resistência à minha (ou qualquer) utopia nessas condições é compreensível. Isso não significa que minhas ideias estejam erradas. Nem significa que estou negando o direito de construir um sistema mais novo que reflita as ideias da próxima geração. Mas, no cerne disso, está a vaga questão de qual é o papel do passado em relação ao futuro. Vaga o suficiente para parecer trivial, essa questão determina nossa relação com o tempo e nossa posição em relação à ignorância. Influencia, portanto, as ideologias com as quais atuamos tanto na área pedagógica quanto na artística, e também a quem nos dirigimos.

O passado é usado como base de sustentação. Depois de identificar o que pode estar certo nessa plataforma, identificamos o que está errado, moldamos nossos valores apropriadamente e os usamos para tentar melhorar o futuro. Isso parece óbvio e “faz sentido”. No entanto, só faz sentido dentro do que sabemos. A exploração de novos parâmetros e a construção de novos significados estão impedidas. O que sabemos pertence ao passado e nossos erros não devem se tornar um legado, mas o que não sabemos pertence ao futuro, e a resposta é flexibilidade, não utopia.

Mesmo quando tenta ser progressista e utópico, o sistema educacional fica amarrado por parâmetros conhecidos. O objetivo é desenvolver competência, e a avaliação de competência não dá espaço para surpresas. Eu acredito que arte e educação são basicamente a mesma coisa, que uma pedagogia que não é criativa é uma pedagogia ruim, e uma arte que não é pedagógica é uma arte ruim, mas há uma ligeira diferença: na arte as surpresas não são apenas permitidas, mas também esperadas.

Mesmo o sistema de educação mais progressista usa palavras consagradas como portadoras de negatividade, sem contestar seu valor. “Impossibilidade” é uma, mas há muitas outras, como “ignorância”, “impraticável”, “desperdício”, “falha”, “ilógico”, etc., todas as quais são desprezadas porque não levam a maiores experiências. No entanto, embora possam não ser convenientes para a experiência vendável, são úteis para o oposto, algo que gosto de chamar de inperiência.

A palavra “experiência” vem do grego ex = fora e perior = intenção. Apesar da qualidade pessoal e subjetiva que atribuímos a ela, a experiência é como nozes para um esquilo: alcançar algo externo que então é trazido para nossas bochechas para ser consumido. Na linguagem convencional, o oposto presumido da experiência é a inexperiência, outra negativa, uma vez que se refere apenas à ausência. Se quisermos considerar a experiência como ela é, sem um valor pré-carregado, a alternativa real seria inperiência, palavra que surpreendentemente quase não existe. Em espanhol aparece como “inperiencia”, com a autoria reivindicada por Jorge Veas em 2007. Veas é um terapeuta e obstetra chileno e, em sua interpretação, a inperiência se aplica ao modo como nos relacionamos com processos internos perceptíveis e controláveis por meio da introspecção. A experiência trata de como nos relacionamos com objetos externos.

Acho inperiência mais útil quando interpretada como uma forma de enfocar as situações internas e externas. Trata-se de um processo de “insight” que não separa o interior do exterior e leva em consideração o que uma experiência pode produzir, o que é projetado na experiência e o que é projetado nos outros. Isso torna a experiência principalmente uma ação, e não um consumo. Baseia-se na responsabilidade de agir e fazer, e não em limitar-se a si mesmo na exploração dos pensamentos e sentimentos após a ingestão, assim como a capacidade e a necessidade de receber.

Em relação ao texto de Che, a liberdade, então, não é algo a ser entregue por um político para então ser experimentado. É algo a ser tomado ou criado, mas sempre influenciado, revelado e compartilhado. Como tal, constitui o fundamento da verdadeira militância, baseada em percepções compartilhadas em vez de doutrinação.

inperiencia ativa tornou-se particularmente importante hoje. Estou escrevendo este texto no meio de uma quarentena que já dura mais de quatro meses. Embora distante da vida real na prisão, a comparação é inevitável. Muito de nossa sanidade provém da introspecção e inperiência da maneira como Veas a descreveu. O confinamento das “quatro paredes” imposto pela pandemia realmente aumenta o perigo de limitar nossa inperiência à definição dele. A incidência e vivacidade do sonho multiplicou-se sensivelmente nestes poucos meses, gerando uma experiência que lembra a “Segunda Vida” e que já gerou estudos e artigos que a explicam como efeito de isolamento e falta de estímulos.

Na ausência de um público perceptível, também pode haver a tentação de voltar às formas românticas de arte que se concentram em expressões pessoais e íntimas. O público deixa de ser uma audiência e passa a ser um conceito abstrato e generalizado que pode ser facilmente ignorado por falta de confronto. Quando a sociabilização ocorre, é mediada por telas de computador, as pessoas se transformam em imagens e as performances coletivas são dominadas por saladas visuais compostas por fragmentos individualizados. Peças e shows aparecem nas redes sociais em uma nova estética inspirada no jogo “Exquisite Corpses” dos surrealistas. Música, histórias e danças compostas por unidades executadas em diferentes casas são perfeitamente costuradas para reconstruir o que poderia ter acontecido como uma performance coletiva em um palco. Um exemplo notável recente é o Lago dos Cisnes de Tchaikovsky realizado nas banheiras de membros de diferentes grupos de balé franceses.

É a diferença entre experiência e inperiência com a liberdade proporcionada por esta que explica por que há um valor negativo atribuído a palavras como “impossibilidade”, “impraticável”, “desperdício”, “ilógico”, “fracasso” e “ignorância”. A atribuição de valores predefinidos vem da ideia de experiência. Os acontecimentos têm que ser bem-sucedidos, caso contrário são “experiências ruins”. Porém, do ponto de vista das inperiências, essas palavras nada mais são do que estímulos. Impossibilidade significa que estamos pensando em um nível de imaginação mais elevado e ilimitado. Impraticável, assim como desperdício, livra-nos da aplicabilidade. Ilógico abre perspectivas ao suspender a causalidade. Falha aponta para uma incompatibilidade entre um problema inicial e uma solução que, portanto, precisa de um problema melhor formulado ou diferente. E ignorância refere-se ao campo imenso e fascinante do que não conhecemos. Está eternamente aberto para exploração, para descoberta, para mudar e criar sistemas de ordem e para nomear coisas ainda não nomeadas ou renomear aquelas que já estão. Na verdade, é o uso negativo da ignorância que limita o escopo, efeito final da educação tradicional.

A intenção negativa de todas essas palavras só ocorre quando elas são colocadas na área da aplicabilidade, ou seja, quando negociamos nossa imaginação com a realidade e encontramos os compromissos necessários. O problema é que, ao ignorar a consciência dessa etapa, também minimizamos e acabamos por perder nosso poder de imaginação. É nesse contexto que a negatividade absoluta da ignorância pode ser provavelmente mais perigosa. É a palavra mais imprecisa (podemos medir o que sabemos, mas não o que não sabemos) e é usada para rebaixar e excluir, em vez de para explorar sistemas de ordem. A educação, como normalmente vista e praticada, representa o apagamento da ignorância, não a exploração do que não sabemos ou daquilo a que não podemos ordenar. Contudo, e se a ordem de que precisamos não estiver no que foi organizado para nós, mas em algo que nós mesmos criamos? Em seu romance Borderliners, Peter Hoeg escreve:

“Organizar é reconhecer. Saber que, em um mar sem fim e desconhecido, há uma ilha em que você já pisou. Eram ilhas como essas que ela estava indicando. Com as palavras, ela havia criado para si mesma uma teia de pessoas e objetos familiares. […] Com suas listas, garantiu que tudo o que ela conheceu um dia voltaria.”

Conhecimento refere-se a um passado e à construção de um passado que nos dá uma sensação de segurança ao nos fazer aprender o que já foi nomeado e reafirmar o que é conhecido. Assim, o nomeado é integrado ao nosso conhecimento, e o mais interessante, o não nomeado, permanece encerrado na ignorância. E, então, o que ainda não se sabe só se pesquisa dentro do previsível, ou seja, o que pode ser derivado do que se sabe. É isso que o torna um processo experiencial e não inperiencial, e o que torna “imprevisível” mais uma palavra negativa. O que ainda não experimentamos foi experimentado por outros, de forma que o que se presume ter sido aprendido ocorreu por aquisição ou compartilhamento dessas experiências. Embora a Economia da Experiência só tenha assumido alguma forma teórica durante os últimos anos do século XX, é claro que a experiência, em vez da inperiência, moldou a comunicação e o comportamento por alguns séculos anteriores. Tem ajudado na construção da cultura de consumo individual atual. Na verdade, é a falta de uma metodologia clara para projetar experiências no contexto de uma pandemia o que agora está desconcertando tanto o mercado de arte quanto as instituições educacionais.

Uma vez que as experiências estão enraizadas em estímulos identificáveis, a tentação de aplicar repetibilidade e análise quantitativa é óbvia. Isso está no cerne das estatísticas e da análise de mercado. Foi também o motor de tentativas malsucedidas de quantificar as inperiências que se aplicam à arte. Notadamente entre elas, e buscando grande precisão, esteve George Birkhoff, que em 1933 propôs a fórmula M = O/C (Medida é igual a Ordem sobre Complexidade). De acordo com os cálculos de Birkhoff, a forma mais perfeita é um quadrado com M = 1,50 e lados horizontais. No entanto, ao discutir música, Birkhoff reconheceu que também se deve levar em conta o gosto e o consenso predominantes e incomensuráveis.

Mais recentemente, o físico Haroldo Ribeiro desenvolveu um algoritmo para determinar a relação entre complexidade e entropia em pinturas a fim de identificar mudanças estilísticas na História da Arte. Aplicado a 140 mil pinturas digitalizadas, o algoritmo não tem como objetivo medir a qualidade, mas ajudar na classificação de acordo com critérios formalistas. Em ambos os casos, é a mente científica experimental em busca de previsibilidade que tenta assumir tópicos não quantitativos que exploram os opostos em busca de uma utopia formalista. Felizmente, tanto a obra de Birkhoff quanto a de Ribeiro permanecem como esquisitices fúteis, assim como sistemas sociais mais ambiciosos que pretendem alcançar a imobilidade.

O que podemos ter aprendido com o vírus é que nossa relação com a tangibilidade direta e a experimentação tradicional é muito frágil. O Novo Homem não surgirá de uma confiança na quantificação. Se for o caso, as mudanças ocorrerão a partir de uma educação que reconsidera e equilibra a experiência com a força de nossos insights e inperiências, buscando fazer disto o foco. Poderá, assim, abrir a possibilidade de gerar novos significados e ordens e, portanto, o que poderemos chamar de “Pessoa [constantemente] Nova e Criativa”.

1 R.D. Laing, The Politics of Experience, Ballantine Books, 1971 (1967), p. 43-44.
2 Stephen Wright, Toward a Lexicon of Usership, p. 12, https://museumarteutil.net/wp-content/uploads/2013/12/Toward-a-lexicon-of-usership.pdf, acessado em 14/07/2020
3  Joseph Pine e James Gilmore, “Welcome to the Experience Economy,” Harvard  Business Review, jul.-ago. 1998,  https://hbr.org/1998/07/welcome-to-the-experience-economy, acessado em 12/07/2020
https://medicinayemocion.blogspot.com/2007/03/experiencia-o-inperiencia.html?fbclid=IwAR1ABWuVK2JcVRg9fdWycpExz8O3OVcYr3CJhQBESPNyNYOf3fBsBPldphE acessado em 12/ 07/2020.
5  Peter Hoeg, Borderliners, Farrar, Strauss and Giroux, 2013
6 George Birkhoff, Aesthetic Measure, Harvard University Press, 1933, p. 47 
7  Ibid. p.11
8  Jess Romeo, “Entropy in Art”, Scientific American 04/2019, p. 16

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Luis Camnitzer é artista, curador e professor. Foi curador de artistas emergentes no The Drawing Center, em Nova York; curador pedagógico da 6ª Bienal do Mercosul, curador pedagógico da Fundação Iberê Camargo, e assessor pedagógico da Coleção Patricia Phelps de Cisneros. Vive e trabalha em Nova York, onde atua como professor emérito da Universidade do Estado de Nova York

Desobedecer, desconstruir, desaprender: por uma pedagogia do contágio Xs finalistas do Prêmio seLecT e o júri de premiação (Foto: Fernando Banzi)

Desobedecer, desconstruir, desaprender: por uma pedagogia do contágio

Giselle Beiguelman, presidente do júri de premiação do Prêmio seLecT de Arte Educação, analisa o perfil dos finalistas e a trajetória do prêmio

A 3ª edição do Prêmio seLecT de Arte e Educação é desde já um marco histórico. Não pelas quase 700 inscrições dos mais diversos pontos do país. Não porque pela primeira vez, nas categorias Formador e Artista, a maioria dos projetos indicados ao Prêmio, pelo júri de seleção, são de proponentes não brancos. Com forte presença de mulheres, especialmente na Categoria Formadores, e dominância de pretos (5), pardos (4) e indígenas (2), a lista dos indicados nessas categorias dava o diapasão desta edição.

Tudo isso seria suficiente para afirmar esta edição como um marco. Mas o que realmente faz desta 3a edição do Prêmio seLecT um divisor de águas é que o primeiro e fundamental apanhado – definido pelo crítico e curador Moacir dos Anjos, pela historiadora da arte e curadora Renata Bittencourt e pela jornalista e curadora Luana Fortes, membros do Júri de Seleção – evidenciava que a cultura resiste e se reinventa como frente disruptiva em contraposição a todas as formas de ignorância e desmonte institucional que estamos vivendo. Esse vetor se projetou no grupo dos finalistas, que reúne um significativo conjunto de projetos. Esses projetos refletem a força dos corpos, corpas (e mentes) não normativos, colocando em pauta a diversidade racial e de gênero e a multiplicidade de vozes que emergem da complexidade territorial brasileira.

Xs finalistas do Prêmio seLecT e o júri de premiação (Foto: Fernando Banzi)

 

A lista de finalistas do 3º Prêmio seLecT de Arte e Educação revela diferentes estratégias de ocupação dos territórios simbólicos do país.

Em conjunto contemplam as demandas pela criação de repertórios para o reconhecimento e inserção política e cultural das matrizes e estéticas indígenas, do lugar das pessoas com deficiência, da problematização das violências de gênero e raça e da construção dos territórios do comum e da vida compartilhada.

Obviamente que, pelo quadro proposto, vocês podem imaginar que há motivos de sobra para comemorarmos o 3º Prêmio seLecT de Arte e Educação. Contudo, é com um misto de alegria e tristeza que chego hoje aqui para proclamar os resultados desta edição.

Tive a honra de presidir o júri do Prêmio seLecT desde a primeira edição, em 2017. A realização do seminário que organizamos então aconteceu pouco tempo depois do golpe que levou Temer ao poder, em um processo de impeachment que depôs a presidenta Dilma Rousseff.

Estávamos apreensivxs com o desmonte que se abateria nas políticas educacionais e culturais. Afinal, fazíamos a premiação enquanto o governo propunha extinguir a obrigatoriedade do ensino de artes, filosofia e sociologia no ensino médio e a extinção do Ministério da Cultura.

A segunda edição ocorreu em paralelo ao início da última campanha presidencial, em 2018. A cerimônia aconteceu em Brasília, uma semana exatamente depois do incêndio do Museu Nacional e poucos meses antes da eleição de Jair Messias Bolsonaro. As chamas não se apagaram. Pelo contrário, tomaram o país de ponta a ponta, consumindo a Amazônia e o Pantanal.

Nosso patrimônio histórico e a memória do país vêm sendo submetidos a sucessivos assaltos por teorias negacionistas que pululam sem freios nas redes sociais, em grupos de ódio que desdenham das pautas sobre gênero, raça e cultura, afrontando a dor dos descendentes de escravizados, as demarcações das terras indígenas e as instituições responsáveis pela preservação de nossa história, como o IPHAN e a Casa de Rui Barbosa. Desde o início de 2018 tivemos três ministros da educação e cinco secretários especiais da cultura. Frente a uma pandemia global, que já ceifou mais de 130 mil vidas, encaramos o terceiro ministro da saúde.

Xs finalistas do Prêmio seLecT e o júri de premiação (Foto: Fernando Banzi)

Ataques sistemáticos às universidades e institutos federais tornaram-se recorrentes. A desqualificação da produção artística e de suas instituições, idem. No Estado de São Paulo, um Projeto de Lei, o PL 529, enviado pelo governador João Dória à Alesp, propõe retirar das universidades públicas estaduais, a USP, a Unicamp e a Unesp, e da Fapesp, o superávit que garante sua autonomia frente às oscilações econômicas, ameaçando comprometer o futuro da pesquisa, da ciência e do conhecimento. Diga Não ao PL 529.

Como pensar a educação e a arte nesse contexto?

Em vários momentos de nosso seminário, ficou claro que a hora é de desobedecer. Dora Longo Bahia, artista e professora da ECA USP, em sua conferência, perguntava como criar zonas de irresponsabilidade. Afinal, elas são decisivas para romper a estagnação e a estabilidade que garantem a permanência dos poderes que conspiram contra o que é público e o bem comum. Algo que a curadora Sepake Angiama leva adiante, quando propõe desaprender para se libertar, conforme declarou em entrevista recente à seLecT. É preciso de fato recusar uma obediência que o filósofo Frédéric Gros chama de imbecil, porque pressupõe a ausência de raciocínio e a Gross a quem recorro para finalizar minha fala: “A insurreição não se decide. Apodera-se de um coletivo, quando a capacidade de desobedecer juntos volta a ser sensível, contagiosa, quando a experiência do intolerável se adensa até se tornar uma evidência social.” A pergunta, portanto, destaca Gros, não é aquela feita por Thoreau em seu tratado sobre a desobediência civil (Se eu não for, quem será no meu lugar), mas a do sábio talmúdico Hilel, o Ancião, quando questionava “se eu não for por mim, quem o será? Mas se eu for só por mim, quem serei eu?”

Contagiemos. Juntas, Juntos e juntes.

Statement do júri de premiação do 3º Prêmio seLecT Carmem Silva (Fotos: Fernando Banzi)

Statement do júri de premiação do 3º Prêmio seLecT

Paula Alzugaray, Heloisa Buarque de Hollanda, Diane Lima e Valéria Toloi definem os finalistas do Prêmio seLecT de Arte Educação

O Júri de Premiação, integrado por Paula Alzugaray, curadora e criadora do Prêmio seLecT de Arte e Educação, Heloisa Buarque de Hollanda, professora da UFRJ, pioneira dos estudos feministas e da conexão da universidade com as periferias, Diane Lima, curadora independente e mestre em Comunicação e Semiótica e Valéria Toloi, gerente de Educação do Itaú Cultural,  reuniu-se no dia 21 de setembro, pela Internet, para definir os premiados nas categorias Artista e Formador e também os contemplados com o prêmio de fomento Arapuru, finalizando um logo processo de discussões e escuta iniciado em julho, que envolveu o trabalho de seleção dos indicados ao prêmio, a definição dos finalistas, e o seminário com o debate de seus trabalhos com o júri.

A camisa educação vencedora deste ano, feita em parceria por Andrea Hygino e Luiza Coimbra, resume a motivação desse esforço: a educação é a saída de emergência.

Aprendemos muito com os 11 finalistas desta edição do prêmio.

Aprendemos, por exemplo, a escutar outras vozes, com as traduções musicais de Anne Magalhães para libras e com o podcast De Hoje a 8 de Eduarda Gama Canto e seus parceiros.

Aprendemos, também, a operar na chave de uma pedagogia do lixo e das estéticas da possibilidade, que transcende os limites dos corpos e corpas com Vicenta Perrotta e Lara Ovídio de Medeiros Rodrigues. Alargamos nossos horizontes sobre a cultura contemporânea indígena com Gustavo Caboco e Anápuáka Muniz Tupinambá, que nos reeducam para dinâmicas de convívio com posturas descoloniais frente aos cânones tradicionais.

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Essa diretriz é estruturante do trabalho das Políticas da Desobediência de Tarcísio Almeida, que atua a partir do contexto da universidade pública (UFRB), e da Galeria Reocupa junto ao MSTC, pelo embate com a cidade e suas disputas não só narrativas, mas também pelo direito à moradia e à vida. Descolonizar é preciso e isso passa por ocupar outros espaços, como a água de nossos rios, em outros formatos expositivos com e para outros públicos, conforme nos mostrou André Vitor Brandäo da Silva, idealizador e curador da Mostra Flutuante no rio São Francisco.

Temos que ser capazes de criar outras relações de aprendizado e de escuta, que impliquem o toque, a descoberta da dor do outro pelo corpo e pela pele, pautas centrais no trabalho de Renata Aparecida Felinto e Antonio Tarsis de Jesus Miranda.

No Prêmio de Fomento Arapuru, o Júri escolheu, na categoria artista, a educadora artista, Renata Felinto, cuja obra combina procedimentos relacionais da cultura africana a exercícios reflexivos e sensórios, em práticas poéticas do cuidado de si como movimento de despertar-se para o outro.

Nessa categoria, artistas, do Prêmio seLecT, destacamos e premiamos o trabalho de Gustavo Caboco, que por meio de um delicado trabalho de pesquisa no campo da história oral, reencontra sua identidade ancestral indígena. Ao consolidar seu projeto em um livro, objeto cultural que volta a ser alvo de ataque, como é peculiar aos governos mais autoritários, Gustavo aponta para formas de politização da sensibilidade e de descolonização do imaginário coletivo. Baaraz Kawau – Campo após o fogo, é o seu título, que funciona como um ensaio de resposta ao contexto de devastação e destruição de memória e futuros que vivemos… desde o incêndio do museu nacional até a invasão de reservas indígenas.

Na categoria de formadores, inaugurando o prêmio de fomento Arapuru da categoria dos formadores, o Júri  contempla o trabalho da Galeria Reocupa, destacando seu caráter ímpar de articulação entre a cultura e a política, a partir do fazer coletivo em defesa do direito à moradia e de uma rede intersocial de agentes comprometidos com a necessidade de mudanças das estruturas de posse e propriedade mais arraigadas da sociedade brasileira.

Nessa mesma categoria, foi escolhido, para o Prêmio seLecT o projeto De Hoje a 8, podcast de literatura focado na produção cultural do Recôncavo Baiano e na literatura africana lusófona, aqui representado por uma de suas criadoras, Eduarda Gama Canto. Pelo seu enfoque regional e sua inventividade de ocupar a cidade com alto-falantes nos postes e um espaço em uma rádio local, o podcast sinaliza formas de reinvenção da palavra e da comunicação, por meio de uma pedagogia radical da generosidade intelectual.

A todos os participantes ficam nossos mais sinceros e felizes agradecimentos. Como dizia nosso educador maior, Paulo Freire, “A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca”. Não parem.

Tainá de Paula: educação é chave para derrubada do fascismo Tainá de Paula (Foto: Fernanda Dias)

Tainá de Paula: educação é chave para derrubada do fascismo

Para a arquiteta, urbanista e ativista, uma agenda de arte e cultura só será possível quando restabelecermos os processos democráticos

Nina Rahe

Antes de se tornar arquiteta e urbanista, Tainá de Paula chegou a pensar em ser bailarina. A dança, de acordo com ela, era um movimento de entendimento de si mesma. “Queria entender meu corpo, me entender negra, me entender uma mulher grande dançando e me movimentando”, diz à seLecT. Mas foi a escolha pelo curso de arquitetura na Universidade Federal Fluminense (UFF), onde era uma das únicas estudantes negras, que a levou adiante. Hoje copresidente do Instituto de Arquitetos do Brasil do Rio de Janeiro e mestre em Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Tainá já desenhou projetos de urbanização para habitação popular e favelas no Rio e em São Paulo, promoveu assistência técnica para movimentos como o dos Trabalhadores sem Teto (MTST) e a União de Moradia Popular (UMP) e trabalhou pela regulação fundiária de favelas fluminenses na Fundação Bento Rubião. “A arquitetura é um movimento bonito no sentido de construir sonhos e torná-los realidade. Acho que transformar a vida das pessoas me encantou mais do que me autoconhecer.”

A arquiteta, que já chegou a se definir como uma decolonizadora radical das entranhas desse país, é palestrante do encerramento do 3º Seminário seLecT de Arte e Educação, que será transmitido ao vivo nesta terça-feira, 22/9, às 16h, no Youtube da seLecT. O seminário é a terceira etapa do Prêmio seLecT de Arte e Educação, promovido pela revista seLecT desde 2017 com o objetivo de valorizar escolas, instituições de arte, espaços de ensino, projetos artísticos colaborativos e iniciativas inovadoras que favoreçam os diálogos e os vínculos entre arte e educação. A terceira edição tem correalização do Itaú Cultural, apoio da galeria Almeida e Dale, e parceria da galeria A Gentil Carioca e da Arapuru London Dry Gin.

seLecT: Em uma conversa com Guilherme Wisnik, intitulada “E depois do fascismo vem o quê”, você faz um diagnóstico sobre o que nos levou ao contexto atual e comenta que, embora a derrubada seja algo dado, o fascismo ainda não encerrou seu ciclo. Como resistir a esse cenário e consolidar uma sociedade com bases sólidas?
A primeira coisa é estabelecer um processo de repactuação com a sociedade, entendendo nossa crise institucional, democrática e os limites impostos por esse nosso neofascismo, mas também que a gente precisa dialogar amplamente. É um contexto tão adverso que se colocou – por conta do longo período de agravamento de crise, da vulnerabilidade econômica, sanitária – que existe um desencantamento e uma letargia no que se refere aos movimentos que poderiam nos levar à saída disso. O discurso do ódio e a construção desse ultraconservadorismo estabeleceram na sociedade brasileira um movimento letárgico que fez com que a gente não consiga perceber as movimentações necessárias para que outra etapa aconteça. Temos problemas gravíssimos, como a retirada de direitos, o sucateamento no SUS, as queimadas no Pantanal, uma lista na base das centenas de itens que poderiam provocar convulsões sociais e não estão provocando. A gente perdeu a capacidade de estabelecer os arranjos para a construção de um pacto social e, para provocar esse pacto, precisamos reeducar a mídia que, em grande medida, produziu essa esfera de ódio na nossa sociedade. A gente construiu um processo de criminalização da esquerda num contexto midiático e hoje se faz necessário estabelecer que todo contraponto ao bolsonarismo é importante de ser valorizado enquanto discurso. Por outro lado, a gente precisa provocar na sociedade civil sensações que não sejam a banalização do mal e voltar a falar de temas urgentes, como a fome, a população em situação de rua. Se nos anos 1990, a partir de Betinho, a gente criou termos como “Quem tem fome tem pressa”, que ajudaram a consolidar como norma pacotes e programas sociais governamentais, a gente precisa provocar na sociedade civil um engajamento para que se volte a discutir os problemas centrais do Brasil. Nos últimos anos, o problema central foi a corrupção e isso foi massificado de norte a sul do país em todos os meios de comunicação. É preciso que a gente reconstrua qual é a pauta que nos une e tenho certeza que não é o armamento da população, nem a corrupção.

Qual é o papel da educação nesse cenário?
Não quero entrar no jargão de que a gente resolve tudo com a educação, mas a educação é o instrumento chave para a derrubada do fascismo. E como a gente reeduca uma nação bolsonarista? Por mais que ache pesado o termo, porque me recuso a acreditar que o Brasil se resuma a isso, a gente vive em uma nação onde, de saída, 30% da população flertam com esse ultraconservadorismo. E, nesse sentido, as próximas gerações vão ter passado por um processo de formação extremamente conservador.

A pandemia tornou evidente a conversão do cidadão em consumidor – pela pressão por aberturas de shoppings e cinemas em detrimento de uma discussão sobre a retomada do espaço público. Como reverter esse quadro?
O capitalismo deixou as nações capitalistas despidas nesta pandemia no sentido de que ele é incapaz de lidar com os problemas urgentes das sociedades. O capitalismo tenta responder a essa avalanche de contradições e à necessidade de imposição de outros sistemas. Vimos as discussões sobre o Sistema Único de Saúde ao longo da pandemia e até os Estados Unidos entregaram cheque de mil dólares em cada casa americana. São iniciativas anticapitalistas e multissistemas que foram surgindo e estão sendo estudadas ao redor do mundo. Nunca foi tão fácil discutir taxação de grandes fortunas, justiça tributária e por aí vai. Estou achando curioso os caminhos dentro do mundo neoliberal para a social-democracia e o Brasil, que bebeu da social-democracia, entre idas e vindas, está abrindo mão e destruindo o legado que hoje serve de referência pro mundo inteiro. O SUS é um debate importante de se fortalecer, assim como as universidades públicas, que são as instituições que sustentam o Brasil da barbárie completa. Um dos movimentos da sociedade, nesse sentido, é o de sobreviver e, na sobrevivência, você tem pouca capacidade de resposta, e a classe média tenta sobreviver por aparelhos, se adequando a esse novo meio de consumo e se retraindo e aceitando ser precarizada sem muito questionar. Existe uma mudança de comportamento de consumo e as pessoas estão sendo empurradas para um consumo que já não faz mais sentido. Devíamos estar fazendo o caminho inverso. Como falamos de comércios locais e não de grandes pontos de concentração de consumo? Os shoppings, mesmo com a vacinação em massa, sempre serão lugares de risco de contágio. Então não vamos discutir isso? A gente tem um modelo de shopping, de estruturar gigantes, que é datado dos anos 1970 e 1980, e ainda não foi remodelado a partir das novas tendências de consumo. O que os Estados Unidos e a Europa têm feito é estruturar os shoppings com capacidade resiliente, utilização de energia solar e eólica, alta sustentabilidade em consumo alimentar etc. Há todo um acúmulo que está focado já no século 21 e que o Brasil sequer chegou a atingir. Agora a gente reabre esse espaço, que antes da pandemia já estava todo errado, sem construir um debate sobre consumo. A gente precisa estabelecer essa discussão para ontem e isso se faz a partir de uma legislação nova e de executivos preparados para lidar com os problemas urbanos e sociais do século 21.

Tainá de Paula (Foto: Andrea Capella)

 

No livro Desobedecer, Frédéric Gros faz uma reflexão sobre a democracia crítica e uma desobediência que questiona as estruturas hierárquicas e os hábitos sociais. Desobedecer é preciso? E como é possível desobedecer sem ir para as ruas?
Queria tanto que a gente conseguisse promover desobediências civis. A vacinação se faz urgente e vai ser central para reestruturar essa aglutinação no espaço público. Mesmo entendendo que o cenário será outro quando a gente puder aglomerar grandes atos, não se pode perder de vista a importância de ações de insurgências tradicionais. O Brasil viu grandes concentrações fazerem grandes mudanças e isso pode ser um contexto perdido da nossa história, mas ações recentes como “Ele não”, na minha opinião, não podem ser diminuídas. Que a gente consiga logo fazer o “Ele não”, pois acredito que fará toda diferença, pensando já em 2022. Os encontros coletivos criam um imaginário muito importante e uma construção subjetiva que precisa ser restabelecida. Outro ponto importante é pensar como a gente faz uma reconstrução dos nossos pactos. O Lula recentemente lançou um vídeo que achei superinteressante – e não é tudo que ando concordando com ele –, fazendo um chamado: “as pessoas querem saber de arma e ódio ou querem saber de fome e comida?” É uma questão que cola e está pegando muito. Eu sou de uma família que não acessava a carne com normalidade, com regularidade, e isso era uma conquista. O que virá em 2021 é uma miséria profunda, com um desemprego jamais visto no cenário recente brasileiro, de modo que a discussão dessas pautas centrais é muito aglutinadora. E, em um último sentido, o melhor domínio das redes sociais vai ser muito importante. Acho que existe uma insurgência digital para a gente construir que não sei como se faz não, mas, na minha opinião, na guerra cultural digital, ela precisa ser mensurada. São três coisas: como voltamos para a rua, como falamos da nova pauta central que nos une e como formulamos melhor nossa guerrilha digital.

Você já disse que não há nenhuma outra forma de estabelecer uma revisão do Brasil se a gente não arrancar as entranhas da colônia. Qual o papel da arte nesse sentido?
É impressionante como a cultura e a arte, de modo geral, foram peças-chave num processo de fascistização recente. Não à toa a gente tem a destruição do Ministério da Cultura e existe um ataque tão bem orquestrado contra – a arte é extremamente libertadora e instigadora de novos processos, tem a capacidade de, mesmo em contexto adverso, de fome, de ampla dificuldade social, desconectar o indivíduo da sua realidade e transportá-lo para um outro mundo de possibilidades, no qual pode discutir sua existência, seu papel social e a sua relação com as chaves de poder. É por isso, se quero colonizar e submeter às múltiplas violências esse indivíduo, a primeira coisa que vou fazer é arrancar a capacidade de reflexão e de consciência e a arte vira alvo principal do meu projeto de poder. O Bolsonaro é muito transparente em como escolheu atores e atrizes políticos para destruir a arte e replica passagens do fascismo com brilhantismo, como sua fotografia no barbeiro enquanto se nega a estar presente em uma reunião com o presidente da França, em alusão à imagem clássica de Hitler. Para mim, existem alegorias dessa nova forma de performar o mal que são muito concretas. A guerra cultural está declarada, Bolsonaro diz a que veio, e tem pesquisadores intelectuais desse fascismo e dessa forma de construir narrativas para que a guerra cultural aconteça desse jeito. Não o vejo capaz de criar essa narrativa sozinho. Existe uma intelectualidade obscura ali, por mais que a gente não queira admitir.

O artista e pedagogo Luis Camnitzer diz que a arte e a educação, quando bem compreendidas, são mais ou menos a mesma coisa. Você concorda?
A arte em um país desigual e capitalista é restrita aos setores que podem pagar por ela. Uma forma de burlar isso com iniciativas de inserção e possibilidades de produção seria através dos espaços escolares e domésticos. Eu sei perfeitamente o papel da arte e como ela opera junto à educação, mas existe um movimento anterior que é o de restabelecimento dos processos democráticos que podem tornar essa atuação como regra. O acesso à cultura a partir da produção periférica, popular, e de iniciativas de arte e cultura nos nossos equipamentos escolares, só pode se dar a partir de políticas públicas e, em um governo conservador, isso vai ser inviabilizado. Como a gente cria indivíduos que demandem isso? Saiu uma pesquisa recente que a grande maioria da população não quer ensino de teatro nas escolas e não quer porque acessa um movimento com uma chave conservadora. É preciso entender essa estrutura e fazer com que ela gire para o que a gente tem de certeza de visão democrática de mundo. É claro que eu queria que todo mundo fosse progressista, antirracista e gostasse dos direitos fundamentais, porém o debate que está colocado não é gostar ou deixar de gostar, mas estabelecer entendimentos de que numa sociedade é preciso criar pontes entre todos os setores sociais, o que está interrompido. Adoraria que todo mundo fosse LGBT, acho a bissexualidade o futuro, mas acho que antes é fundamental a gente saber lidar com a diferença e agora existe uma estrutura totalmente reacionária e antidemocrática. E isso é consequência também de um ensino educacional falho e incoerente. Faltou politizar as pessoas, qualificar os nossos debates, instituir uma agenda antirrascista séria, que fortalecesse movimentos, que inserisse a discussão de classe. O que vejo é uma classe média enlouquecida reforçando as opressões e desigualdades.

Em entrevista à seLecT, a curadora e educadora Sepake Angiama, que também é palestrante do 3º Seminário de Arte e Educação, falou sobre como os museus, em geral, desempenham a manutenção do status quo e, ao lado de outras instituições, também alimentam uma cultura de dominação. Qual o papel da arquitetura nesse processo e como trabalhar por um espaço museológico que seja mais inclusivo e traga a periferia para o seu centro?
Começo dizendo que nesse contexto a gente vai ter muita dificuldade de implementar uma agenda de arte e cultura da periferia, mas sou amplamente defensora e uma das vozes que discute o debate da descentralização da produção da arte, entendendo a arte como produção de cultura e de processos de transformação cultural que precisamos estabelecer no Brasil. Abandonar o centro é como a gente inverte as lógicas do nosso tempo e investe nos nossos produtores da periferia porque, além da ampla resiliência, eles estão preparados para restabelecer esse diálogo. A gente precisa potencializar essas vozes. Talvez o papo reto dessa arte marginal seja o caminho para a reconstrução do Brasil. Agora, em relação à arquitetura, o contexto econômico do Brasil é muito adverso e a arquitetura vai beber nesse cenário porque é uma arte que precisa de um bom cenário econômico para se erguer. Mas entendo também que a gente talvez possa lançar mão das insurgências e da necessidade de construção de guerrilha. Tenho pensado muito sobre como conseguimos viabilizar centros comunitários e centros locais, que se fazem urgentes nesse contexto de país porque ajudam a estabelecer um mundo possível. A arquitetura é um portal para uma outra sociedade e precisamos pensar em uma arquitetura que resolva nosso contexto pós pandemia e ajude a reverberar um modelo de sociedade.

Além da sua atuação nas lutas urbanas, você também já mencionou que a maternidade foi um mergulho na causa feminista. O que mudou quando você se tornou mãe?
Quando me tornei mãe, mudou muita coisa. Sem dúvida alguma, a gente tem uma privação de liberdade por conta da maternidade, uma sobrecarga mental e de tarefas enormes. Tem uma maternidade compulsória construída na nossa sociedade que nos impacta diretamente e a forma que a gente consegue se entender enquanto indivíduo depois da maternidade é muito distante da de antes, na capacidade de trabalho, de criar tempo, desde o lazer até o acesso a cultura. Desde que me tornei mãe, invisto muito nesse debate das dificuldades que a mulher tem na sociedade, desde o parir até o acesso a políticas públicas eficientes. Meu giro na vida, no trabalho, no cotidiano da política, se deu muito por conta do nascimento da Aurora.

Você é candidata a vereadora pelo PT e já foi candidata a deputada estadual pelo PCdoB no Rio de Janeiro. O que te levou a entrar na política?
Pode ser uma coisa muito idealista de dizer, mas foi a vontade de mudar o mundo. Eu venho da periferia do Rio de Janeiro, da praça Seca, em Jacarepaguá, e desde muito nova queria acessar espaços de transformação, de debate coletivo. Ingressei muito nova na pastoral de favelas, comecei a minha militância jovem e queria fazer parte disso de alguma forma. Nunca me entendi como uma figura público-política, mas sempre construí política, desde o meu cotidiano na periferia até a universidade e minha vida profissional. Acho que me entendi como uma figura público-política no movimento feminista. Ali participei ativamente de atos de rua e compreendi minha capacidade de mobilização e de liderança, porque a gente não vê muitas lideranças negras, mulheres periféricas na política. A gente tem Benedita da Silva, teve Marielle Franco, Jurema Batista, mas a ampla maioria é de figuras que são exatamente o oposto do que a gente é, então, me colocar nesse lugar foi muito importante pra entender que é fundamental garantir uma democracia que tenha negros e negras nos espaços de poder.