A legendária escola da Carolina do Norte colocou a arte no centro de sua proposta de formação integral
Leandro Muniz
Em uma série de reportagens, a seLecT apresenta escolas idealizadas e geridas por artistas nacionais e internacionais, históricos e em atividade. A especificidade desses projetos está na transformação dos modelos de ensino e de trocas, isto é, como os afetos e conhecimentos são transmitidos e como podem gerar novas dinâmicas de organização do espaço ou da economia desses centros de reflexão e prática.
Black Mountain College
Carolina do Norte, EUA
Entre 1933 e 1957, o Black Mountain College funcionou como espaço de formação integral no qual o ensino de arte era central para o aprendizado de outras disciplinas. A escola foi uma incubadora de experimentações da arte do século 20 e propunha um modelo inovador tanto nos conteúdos tratados nas aulas, quanto na organização da grade, na forma de sociabilidade entre alunos e professores e na estrutura administrativa e operacional.
Fundada em 1933 por John Andrew Rice (1988-1968), na Carolina do Norte, o BMC tinha como objetivo a formação completa em diversas disciplinas, considerando a arte como ponto central para o aprendizado por sua associação entre teoria e prática. A formação humanística não buscava apenas a assimilação de conhecimento, mas o amadurecimento emocional e intelectual do aluno em um contexto de experimentação e discussões rigorosas. O objetivo era aprender através de experiência pessoal e não de conhecimento derivativo.
O início
No primeiro ano, 21 alunos se inscreveram no programa criado por John Rice e um círculo de professores egressos e demissionários do Rollins College, na Flórida. Rice foi diretor do BMC até 1938, quando a estrutura hierárquica foi substituída por uma horizontalidade total entre os docentes, na medida em que estruturas de supervisão e administração externas foram eliminadas. Um conselho auxiliava no desenvolvimento da proposta pedagógica, mas todas as decisões políticas eram tomadas entre professores e alunos.
Ainda no ano de sua fundação, a escola recebeu os artistas Joseph e Anni Albers, vindos da Bauhaus (1919-1933), para aulas de desenho e tecelagem, respectivamente. Com a ascensão de Hitler na Alemanha, a inovadora escola de arte, arquitetura e design foi fechada e muitos professores emigraram para os Estados Unidos. Assim, o BMC reunia as ideias revolucionárias sobre aplicação da arte na vida da Bauhaus com o pensamento mais progressista sobre educação na época nos Estados Unidos sob a influência do filósofo e pedagogo John Dewey. Durante o período na BMC, o casal Albers fez diversas viagens de pesquisa para Cuba, México, Peru e Chile, documentando e coletando obras pré-colombianas e de culturas indígenas contemporâneas, que tiveram grande influência em seus trabalhos e aulas.
Nos primeiros oito anos, a escola funcionou em prédios alugados no YMCA Blue Ridge Assembly, também na Carolina do Norte. Em 1941, foi transferida para o Lago Eden, em Asheville, Carolina do Norte, e teve dois projetos arquitetônicos. O projeto de Walter Gropius previa a criação de um prédio com ateliês e salas de aula integrados, em um edifício suspenso por pilotis de frente ao lago, mas não foi realizado por questões econômicas, devido à instabilidade gerada pela Segunda Guerra. O edifício construído foi o de Alfred Lawrence Kocher, um arquiteto mais jovem. O projeto, de 1940-41, era mais econômico e partia de edificações já presentes na região e foi executado pelos próprios alunos e professores.
O Black Mountain College pertencia e era dirigido pelos docentes. Todos os membros da escola participavam das decisões políticas sobre a estrutura pedagógica e atuavam nas tarefas práticas, como cuidar da cozinha ou da fazenda – iniciada pelo aluno Norman Weston. A escola combinava, portanto, trabalho artístico, educação, agricultura e vida em comunidade. Isso teve um papel estratégico para a produção de alimentos para consumo local, na época da guerra e da Grande Depressão.
Estrutura, metodologia e proposta
As formas de sociabilidade, arquitetura, organização política e decisões econômicas refletiam um pensamento integrado entre teoria e prática. A educação comunal tinha como objetivo levar o indivíduo a perceber suas relações com os outros e com o ambiente. A centralidade da arte se dava pela necessidade de observação, julgamento e ação, em um entrelaçamento entre aprendizado e vivência.
Nas práticas do BMC estava a interdisciplinaridade e a colaboração – não sem conflitos – entre os participantes da escola que contava com aulas de arte, filosofia, psicologia, literatura, matemática, latim etc. Entre os professores estavam M.C. Richards (literatura), Albert William Levi (filosofia), John Wallen (psicologia), David Corkran (história), Theodore Rondthaler (história e latim), Trude Guermonprez (tecelagem), Max Wilhelm Dehn (matemática) e, entre tantos outros, o arquiteto Buckminster Fuller, criador da cúpula geodésica, cujas primeiras versões foram realizadas ali, entre 1948 e 1949.
A programação e a grade de aulas – que ocorriam de manhã e à noite, enquanto as tardes eram reservadas para experimentações e outras atividades – mudavam anualmente de acordo com os interesses e ambições dos participantes da temporada. As aulas eram simultaneamente informais e rigorosas, em um modelo de análise coletiva da produção dos alunos, que combinava interpretação de trabalhos e diálogos na forma de críticas, o que ficou conhecido por crit. Nos finais de semana, após o jantar, havia apresentações de dança, concertos, peças teatrais e festas.
O BMC era uma escola sem notas e pontuações – ainda que essas fossem arquivadas burocraticamente para casos de transferências – e sem provas regulares, na medida em que os alunos eram continuamente criticados por projetos práticos em sua área de interesse, analisados por professores tanto em sua execução, quanto análise teórica e oral.
Diferentemente do modelo norte-americano atual, no qual o aluno de arte é endividado para realizar seus estudos, era uma escola gratuita subsidiada por fundações privadas, o que os livrava de responder a interesses governamentais. Não havia exames admissionais, alguns alunos frequentavam apenas os cursos de verão, enquanto outros passavam ali vários anos. O tempo de formação se dava de acordo com o estudante.
A primeira temporada de verão aconteceu em 1944, com artistas como Willem de Kooning, Amedée Ozenfant, Robert Motherwell, o compositor Arnold Schoenberg e o crítico Clement Greenberg, entre outros professores convidados. Em 1954, os poetas Robert Duncan e Robert Creeley criaram o Black Mountain Review, um periódico experimental de poesia, ativo por três anos e responsável por divulgar os primeiros textos da poesia Beat, por exemplo. Outra iniciativa ligada ao editorial dentro da escola era The Jargon Society, uma pequena imprensa fundada em 1951 por Jonathan Williams, poeta, fotógrafo e ex-aluno da escola.
Vanguarda
O BMC foi berço de uma série de experiências radicais. Foi lá que aconteceu a primeira versão do happening Theater Piece No 1, de John Cage, com a colaboração improvisada de Robert Rauschenberg, Merce Cunningham, David Tudor, entre outros. A escola era um celeiro de criatividade no qual artistas de diferentes linguagens conviviam e colaboravam. A fusão e a quebra das barreiras entre linguagens foi um denominador comum entre os artistas que passaram por ali. As peças que Rauschenberg produziu para os eventos performáticos de Cage ou Cunningham, por exemplo, são estranhos modelos de uma pintura aplicada em objetos tridimensionais, usados funcionalmente nas apresentações e agora guardadas em acervos de museus.
O BMC é recorrentemente citado como o berço da vanguarda artística norte-americana. Entre os alumni da escola destacam-se a escritora Vera B. Williams, os artistas Jacob Lawrence, Cy Twombly, Kenneth Noland, Ruth Asawa, Franz Kline, entre outros. A partir dos anos 1940, muitos desses ex-alunos tornaram-se professores.
O fim
Joseph e Anni Albers, que estavam na escola desde 1933 como pilares fundamentais do pensamento do Black Mountain College, se demitem em 1949 por divergências sobre as direções que a escola deveria tomar. Em 1951, o poeta e professor Charles Olson assume a direção da escola, promovendo um “retorno à ordem” convencional: modelos tradicionais na grade e na administração da escola, momento em que grandes dívidas financeiras e dificuldades para pagamentos de professores levaram a escola ao fim. Em 1957, o projeto foi encerrado. De lá para cá, algumas tentativas nostálgicas de reavivar a escola em seu modelo original de inventividade ocorreram, mas não tiveram êxito.
Black Mountain College hoje
Ativo desde 1993, o projeto Black Mountain College Museum + Arts Center é destinado a preservar e perpetuar a memória do projeto. É uma instituição responsável por manter e difundir o legado do BMC, além de expor o trabalho de artistas que passaram pela escola ou foram professores, assim como daqueles em atividade cuja influência do BMC é marcante. O museu possui uma coleção com mais de três mil peças de ex-alunos e professores, além de documentação oral realizada desde 1999, que conta com entrevistas e depoimentos de cerca de 50 artistas. A instituição conta ainda com uma publicação fundada em 2005 pelos editores Brian Butler e Blake Hobby, com edições temáticas, textos comissionados ou selecionados via submissão.
O modelo interdisciplinar – herança da Bauhaus –, que busca uma formação integrada, foi influente na formação de diversas instituições norte-americanas e podemos ver o lastro desse pensamento no modelo de formação acadêmica em arte atual. O impulso de uma democracia absoluta ou de uma estrutura flexível para todos os participantes do projeto funcionou por 24 anos e teve efeitos diretos e indiretos nos cursos de formação em arte de todo o mundo.
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