Arte e educação: relação ou contato Fotos: Divulgação

Arte e educação: relação ou contato

Palestra de Dora Longo Bahia para o Seminário seLecT de Arte e Educação

Dora Longo Bahia

Vou tentar estabelecer aqui uma reflexão sobre as contradições presentes na arte, na educação e na relação – ou contato – entre elas. Vou partir do método dialético para investigar os materiais que produzem algumas dessas contradições, fazendo uso de alguns conceitos filosóficos, que vão ser apresentados aqui de forma rápida, como imagens-conceitos. Contrapondo-os a algumas imagens-imagens espero incitar um debate crítico sobre o assunto.

O termo “dialética” é geralmente usado para descrever um método de argumento filosófico que envolve algum tipo de processo contraditório entre lados opostos. A versão clássica da dialética, é aquela utilizada por Platão.

O filósofo grego apresenta seus argumentos filosóficos por meio de um diálogo ou debate, geralmente entre o personagem de Sócrates, de um lado, e alguma pessoa ou grupo de pessoas a quem Sócrates estava se dirigindo (seus interlocutores), do outro.

Enquanto os “lados opostos” de Platão eram pessoas (Sócrates e seus interlocutores), para o filósofo alemão G. W. F. Hegel, eles dependem do assunto que está sendo tratado.

Os “lados opostos” podem ser definições diferentes de conceitos lógicos que são opostos entre si ou diferentes definições da consciência e do objeto que ela afirma conhecer.

O método dialético hegeliano é posteriormente subvertido por Karl Marx, que propõe um método não apenas diferente do de Hegel, mas exatamente oposto a ele.

No Posfácio à 2ª edição alemã do Capital, Marx explica:

“Para Hegel, o movimento do pensamento – que ele personifica com o nome de Ideia – é o demiurgo da realidade, que não é senão a forma fenomenal da Ideia. Para mim, pelo contrário, o movimento do pensamento é apenas o reflexo do movimento real, transposto e traduzido no cérebro do homem” (MARX, Posfácio à 2ª edição alemã [1863]).

Marx destaca, a despeito do misticismo que denuncia em Hegel, a dialética como núcleo racional de seu pensamento. Vira a dialética hegeliana ao avesso, assumindo o ponto de vista do proletariado como sujeito histórico concreto – portador da possibilidade do devir – e a partir disso elabora sua perspectiva revolucionária.

O fundamento de indeterminação que Marx identifica na classe trabalhadora a capacita a agir pela dissolução de todas as classes e levar as relações sociais à superação do caráter de antagonismo que as define.

Marx passa a caracterizar a dialética não apenas como forma de pensamento que captura o desenvolvimento daquilo que é – como em Hegel – mas como a forma de desenvolvimento da história que, quando capturada pelo pensamento, a torna revolucionária em si mesma.

Adorno e Horkheimer, por sua vez, usam o método dialético para estabelecer uma crítica feroz da sociedade ocidental contemporânea e da relação entre industrialização e arte.

Na Dialética do Esclarecimento, escrita em 1944, durante os anos de exílio nos Estados Unidos, os autores desenvolvem uma teoria social crítica, lendo Marx como um materialista hegeliano, cuja crítica ao capitalismo incluiria inevitavelmente uma crítica às ideologias que o capitalismo sustenta e exige.

A Dialética do Esclarecimento começa com uma avaliação sombria do Ocidente moderno:

“No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal” (ADORNO, 1985, p. 17).

Adorno e Horkheimer apresentam então uma reflexão sobre essa contradição.

Como o progresso da ciência moderna, da medicina e da indústria pode prometer libertar as pessoas da ignorância, das doenças e do trabalho brutal e alienante e, ainda assim, ajudar a criar um mundo onde as pessoas engolem voluntariamente a ideologia fascista, praticam deliberadamente múltiplos genocídios e produzem incansavelmente armas letais de destruição em massa?

A razão, os autores respondem, tornou-se irracional.

Um ano após a morte de Adorno, em 1970, uma série de ensaios sobre arte, escritos por ele entre 1961 e 1969 foram publicados sob o título de Teoria Estética. O texto reconstrói o movimento da arte moderna a partir da perspectiva da reflexão estética, realizando uma dupla reconstrução dialética que tenta extrair o significado sócio-histórico da arte e da filosofia discutidas. O livro começa e termina com reflexões sobre o caráter social da arte.

Para isso, Adorno retém de Kant a noção de que a arte é caracterizada por sua “autonomia” formal, combinando a ênfase kantiana na forma, com a ênfase hegeliana na importância intelectual e com a ênfase marxista na imersão da arte na sociedade como um todo.

O resultado é um relato complexo da simultaneidade entre o caráter necessário e ilusório da “autonomia” da obra de arte, que, por sua vez, é a chave para o caráter social da arte, ou para que esta seja “a antítese social da sociedade” (ADORNO, 1970, p. 19).

Adorno considera as obras de arte autênticas como “mônadas sem janelas” (ADORNO, 1970, p. 16) cujas tensões expressam conflitos inevitáveis dentro do processo sócio-histórico do qual surgem e ao qual pertencem.

Essas tensões integram a obra de arte por meio da luta do artista com materiais historicamente carregados e evocam interpretações conflitantes que, muitas vezes, acabam confundindo as tensões internas da obra com sua conexão com os conflitos sociais.

Mas a obra de arte não é apenas contraditória em relação a sua “autonomia”. Segundo o também filósofo Walter Benjamin, ela tem um aspecto dialético que desempenha um papel político vital: a desmistificação mútua entre a realidade material e a expressão estética.

Por um lado, a arte requer elementos da história material para sua interpretação, para que os “tesouros” culturais deixem de ser apetrechos da classe dominante. Por outro lado, fornece uma iconografia crítica para decifrar essa mesma história material, de maneira que seus elementos possam ainda constituir uma “constelação revolucionária com o presente” (BUCK-MORSS, 2005, p. 40).

A relação dialética entre realidade material e expressão estética – vulgarmente conhecidas como “vida e arte” – também é recorrente na reflexão sobre arte, pelo menos desde as vanguardas históricas.

Em sua fase inicial, a Internacional Situacionista (I.S.), formada em 1957 por um grupo de intelectuais e artistas, propunha a superação da arte a partir de seu próprio interior, numa simultaneidade de destruição e realização.

No entanto, as contradições logo se mostraram irreconciliáveis. As desavenças entre os artistas dentro da I.S. tornaram-se cada vez mais evidentes e o grupo em torno de Guy Debord – seu líder mais ilustre – concentrava todos os seus esforços na produção teórica e no comprometimento organizacional.

As divergências entre os integrantes da I.S. aumentaram de tal forma que levaram à exclusão forçada ou à saída voluntária de todos os artistas. A partir de 1962, uma versão reorganizada e recomposta do grupo manifestava seu interesse na arte, apenas com relação aos limites de sua superação na forma de uma revolução social.

Num contexto em que a aceleração do tempo de giro do consumo e a superação das barreiras espaciais fizeram com que a sociedade do espetáculo descrita por Debord se disseminasse por todo o “mundo civilizado”, as imagens e sistemas de signos – sejam eles conformistas ou “subversivos” -– se tornaram a “mercadoria” ideal para a acumulação do capital.

A arte – assassinada e “superada” diversas vezes desde o romantismo – parece um zumbi delirante. Ela vagueia em meio à montanha de imagens-mercadorias produzidas pela indústria cultural, tentando ocupar a posição crítica que possuía até meados do século XX. Assume a interferência do mundo a que se refere, procurando afirmar-se como um campo confuso de intersecção entre diferentes planos contraditórios de discurso – sejam eles estéticos, éticos, teóricos, históricos ou políticos.

Mais contradições aparecem com relação à posição que o artista ocupa na sociedade contemporânea. Já em 1970, a crítica de arte norte-americana Lucy Lippard (1937) chama a atenção para a frustração do artista ao correr “de cima para baixo entre a torre de marfim e as ruas”, num movimento esquizofrênico entre as instituições e a realidade material (LIPPARD, 1986, p. 189).

Até meados do século passado, o artista, mesmo quando imerso nas jogadas de poder, tinha duas alternativas: ou fazer um jogo a partir das exigências de seus poderosos patronos – tornando-se um “pintor da corte” – ou adotar uma posição marginal e vanguardista.

Hoje, toda “novidade” artística já surge obsoleta, como resultado de uma corrida frenética e infrutífera contra um mercado inelutável que transforma tudo em mercadoria.

Mesmo as atitudes, experiências e ações artísticas ditas “marginais” são rapidamente anuladas por meio da corporificação e mercantilização da obra e do artista, ou esvaziadas por meio da sua espetacularização. Pelo simples fato de existirem, tornam-se tão mercadoria quanto uma pintura ou escultura tradicional.

O “artista marginal” acabou por desaparecer como uma figura específica, uma vez que a atitude perceptual que ele anteriormente incorporava agora impregna a consciência histórica.

Mesmo que o artista ainda tente buscar a “marginalidade” perdida, ele precisa estar ciente das articulações da arte com as instituições do poder, sejam elas o Estado – que estabelece o que é digno de se tornar cultura nacional –, a mídia – que decide o que é verdade, o que é pós-verdade e o que não é nenhuma das duas –, ou o poder econômico privado ou corporativo representado pelos colecionadores, investidores e instituições – que decidem quem integra as grandes coleções, exposições, festivais etc

Essas articulações são inevitáveis, já que a arte, pelo menos desde a Idade Média, mantém relações cordiais com o poder – incorporado primeiro pela igreja, depois pela aristocracia, pela burguesia e, mais recentemente, pelas corporações.

Por causa disso tudo – da mesma forma que políticos e cientistas – os artistas são responsáveis tanto por suas obras quanto por suas implicações públicas.

Por outro lado, toda ação artística envolve também uma zona de irresponsabilidade, já que não deixa de ser um “ato de risco”.

Assim como o ato político radical, a prática artística é “uma intervenção específica num contexto sócio-simbólico” que, apesar de sempre estar situada num contexto concreto, não é inteiramente determinada por ele.

Este “ato” sempre envolve um risco radical, já que “é um passo no desconhecido”. Ele não tem nenhuma “garantia quanto ao resultado final” porque pode alterar “retroativamente as próprias coordenadas em que interfere” (ZIZEK, 2003, p. 75).

Para que a comparação entre o ato político radical e a ação artística não seja muito superficial ou ingênua, proponho pensar a relação entre eles em duas chaves.

A primeira seria na chave daquilo que o filósofo esloveno Slavoj Zizek descreve como paralaxe:

“A paralaxe não é simétrica, composta de dois pontos de vista incompatíveis do mesmo X: há uma assimetria irredutível entre os dois pontos de vista, uma torção mínima. Não temos dois pontos de vista, temos um ponto de vista e o que foge a ele, e o outro ponto de vista preenche o vazio do que não podemos ver do primeiro ponto de vista” (ZIZEK, 2008, p. 47).

Arte e política seriam, portanto, irredutíveis entre si, relacionando-se apenas por meio de um desvio em que uma preencheria a lacuna deixada pela outra.

A segunda chave para se associar arte e política sem incorrer em chavões superficiais, seria eliminar de vez a relação entre elas e desvelar aquilo que outro filósofo contemporâneo, o italiano Giorgio Agamben, chama de “contato” (AGAMBEN, 2017, p. 304).

Segundo ele, o espaço da política é delimitado por pares de elementos – o poder e a vida nua, a casa e a cidade, a violência e a ordem instituída, a anomia e a lei, a multidão e o povo. Esses pares de elementos se constituem reciprocamente por meio de sua relação de oposição.

Entretanto, essa mesma relação que os une os pressupõe, ao mesmo tempo, como não relacionados. A relação tem assim um papel ontológico essencial pois nela se expressa a própria estrutura que pressupõe a linguagem, uma relação primordial entre o ser e seu dito ou nomeado.

Agamben conclui que o acesso a uma figura diferente da política – que é um problema da maior urgência para o mundo contemporâneo – teria que ter a forma daquilo que ele chama de uma “potência destituinte” (AGAMBEN, 2017, pp. 295-310), isto é, daquilo que coloca em questão o próprio estatuto da relação, que confronta-se com o ser frágil que é a linguagem, tão difícil de conhecer e captar.

Uma “potência destituinte” seria aquilo que, abandonando as relações ontológico-políticas, possibilitasse o aparecimento de um “contato” definido unicamente por uma ausência de representação.

Segundo Agamben, onde uma relação for destituída e interrompida, seus elementos estarão em contato, não há nada entre eles, apenas o vazio que ocupa o lugar do vínculo que tinha a pretensão de mantê-los juntos – mas ao mesmo tempo separados (AGAMBEN, 2017, p. 304).

Nesta chave, a “relação” entre arte e política seria então eliminada.

Para Agamben, a prática artística se tornou o lugar em que a problemática envolvendo a identificação entre a existência humana e um certo modo de vida é demonstrada.

Se, na antiguidade a atividade do artista era definida exclusivamente por sua obra e ele tinha um caráter “residual” com relação a ela, na modernidade é a obra que constitui um resíduo incômodo da atividade criadora e do gênio do artista (AGAMBEN, 2007, p. 276).

Ao tentar se definir pela própria operação, o artista moderno está, de fato, condenado a permutar a própria vida com a própria operação e vice-versa.

“Se a prática artística é o lugar em que se faz sentir, com maior vigor a urgência e, ao mesmo tempo, a dificuldade da constituição de uma forma-de-vida, isso se deve ao fato de que nela se conservou a experiência de uma relação com algo que excede a obra e a operação e, mesmo assim, continua sendo delas inseparável” (AGAMBEN, 2007, p. 277).

Segundo o filósofo italiano, uma forma-de-vida não é definida por uma práxis ou por uma obra, mas sim por uma potência e por uma inoperosidade, isto é, o modo em que o ser se mantém em contato com uma potência pura, em que vida e forma, privado e público, entram num limiar de indiferença.

Um artista não é, portanto, o sujeito soberano de uma operação criadora ou de uma obra, mas sim um ser anônimo que torna as obras da linguagem inoperosas.

Ele não é o autor da obra (no sentido moderno, essencialmente jurídico do termo) nem o proprietário da operação criativa, que são apenas resíduos subjetivos resultantes da constituição da forma-de-vida.

Para Agamben, esta não pode se reconhecer ou ser reconhecida porque é antes de tudo a articulação de uma “zona de irresponsabilidade”, em que as identidades e as imputações do direito estão suspensas (AGAMBEN, 2017, pp. 277-278).

Mas como pode haver lugar dentro das escolas – dos museus e das instituições – para essa articulação de “zonas de irresponsabilidade”? Como uma instituição de ensino pode estimular um aluno a tomar posições irresponsáveis e ao mesmo tempo exigir que ele respeite as regras? Como oferecer um território para a investigação das fendas e dobras no sistema, estimulando iniciativas de risco que explicitem as contradições do fazer artístico sem provocar a ira de setores conservadores da sociedade?

A partir dessas colocações fica claro que a formação do artista também  é contraditória. Em que momento o artista “está formado”? Será que ele não é justamente o desforme, o informe ou o deformado da sociedade?

Para discutir o conceito de “formação” em arte no contexto brasileiro, acho importante citar o escritor Antonio Candido e seu livro Formação da Literatura Brasileira, de 1959. Candido define a literatura – a arte – como

“uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal da linguagem, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela, se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração” (CANDIDO, 1972, pp. 803-809).

Em seu livro de 1959, refere-se à Formação da literatura como fundação, desenvolvimento e consolidação de um “sistema literário” (não de um escritor ou de um escrito), isto é, da articulação entre autor, obra e público, com continuidade histórica (tradição). Literatura é esse sistema articulado que exclui manifestações isoladas e sem ressonância.

(Foto: Divulgação)

No caso do Brasil, o “sistema literário” teria se constituído plenamente com o surgimento de Machado de Assis. A partir de então, a Formação teria chegado a seu auge, passando a existir uma Literatura Brasileira.

Os conceitos propostos por Antonio Candido passam a funcionar como termômetro para a crítica literária local, na medida em que contribuem para a avaliação das obras e ajudam a apontar quais seriam os autores que passariam a fazer parte desse “sistema”.

Para Candido, esses autores são aqueles que pensam a sociedade a partir da literatura. A análise apresentada em seu livro foi extremamente importante pela criação tanto de paradigmas para a crítica literária local, quanto de sistemas antagonistas a eles.

O poeta Haroldo de Campos, por exemplo, discordava das afirmações de Candido, considerando-as apenas um “construto teórico baseado numa lógica de exclusão e inclusão de textos”. Segundo ele, o ponto de vista apresentado em Formação da Literatura Brasileira é problemático por basear-se numa “concepção metafísica da história, marcada por uma linearidade evolucionista” (POLÊMICA, 2019).

No contexto atual, em que o fluxo transnacional do capital, a contaminação cultural, as redes sociais e os sistemas complexos – originados de padrões simples1 –determinam novas relações de tempo-espaço, qualquer construção vertical e historicista torna-se arbitrária ou mesmo alienada.

Qual seria então a opção para uma formação que não fosse marcada por uma linearidade evolucionista?

Segundo outro filósofo contemporâneo, Alain Badiou, a educação é uma mediadora entre filosofia e arte. A arte produz verdades – assim como a política, a ciência e o amor – que são desveladas pela filosofia com intermediação da educação.

Em Pequeno Manual da Inestética, Badiou discorre sobre esse entrelaçamento entre arte, filosofia e educação por meio de três esquemas – didatismo, romantismo e classicismo.

“No didatismo, a filosofia entrelaça-se com a arte na modalidade de uma vigilância educativa de seu destino extrínseco ao verdadeiro. No romantismo, a arte realiza na finitude toda a educação subjetiva da qual a infinidade filosófica da ideia é capaz. No classicismo, a arte capta o desejo e educa sua transferência pela proposta de uma aparência de seu objeto. Aqui, a filosofia só é convocada enquanto estética – dá sua opinião sobre as regras do “agradar” (BADIOU, 2002, pp.15-16).

Para o filósofo, os três esquemas foram saturados durante o século XX e acabaram produzindo uma espécie de “desenlaçamento dos termos, um desrelacionamento desesperado entre a arte e a filosofia”, bem como o desaparecimento puro e simples do que circulava entre elas: a educação (BADIOU, 2002, p. 18).

A arte – assim como a política, a ciência e o amor –

“educa simplesmente porque produz verdades e porque “educação” jamais quis dizer nada além do seguinte – a não ser nas montagens opressivas ou pervertidas: dispor os conhecimentos de tal maneira que alguma verdade possa se estabelecer…” (BADIOU, 2002, p. 21).

E na prática? Qual é a verdade estabelecida por meio dos conhecimentos dispostos nas escolas de arte?

Nelas, os estudantes estudam as estratégias de inserção no mercado, os procedimentos “revolucionários”, as técnicas tradicionais e as determinações históricas, aprendendo a ser “jovens artistas”.

O termo “jovem artista” – de uso frequente em editais, programas de residência e textos de apresentação de exposições ou projetos curatoriais – significa muito mais do que um período na vida de alguém que faz arte.

Não é simplesmente a mesma coisa que o “artista quando jovem” de James Joyce.

Este último é descrito no primeiro romance do escritor irlandês, Retrato do Artista Quando Jovem de 1916, em que ele narra a “formação” de seu alter ego Stephen Dedalus. Conforme o personagem amadurece, Joyce muda o estilo do texto, construindo um espelhamento entre conteúdo e forma.

O livro é considerado um romance de “formação”, ou seja, um romance em que se expõe o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de um personagem, que nesse caso se confunde com o do próprio autor.

Enquanto o termo “o artista quando jovem” é uma denominação retroativa que pressupõe a existência de uma obra feita por alguém que faz arte (o artista), a nomenclatura “jovem artista” prescinde da obra. Ela estabelece uma categoria que existe antes da arte, uma aposta que pode dar certo (valorizar) ou não.

As escolas de arte lançam “jovens artistas” na mesma frequência que as grandes lojas lançam suas novas coleções.

Surgem então os “jovens-artistas-mercadoria” que abastecem a demanda capitalista pelo “novo-sempre-igual”2. A verdade que se estabelece nas escolas de arte é, portanto, a prevalência total do fenômeno que Marx chamou de fetichismo da mercadoria:

“Todos os objetos e todos os atos são iguais enquanto mercadorias. Eles não são nada além de quantidades maiores ou menores de trabalho acumulado e, portanto, de dinheiro. É o mercado que realiza essa homologação, para além das intenções subjetivas dos autores. O reinado da mercadoria é terrivelmente monótono e até mesmo sem conteúdo. Uma forma vazia e abstrata, sempre a mesma, uma pura quantidade sem qualidade – o dinheiro – se impõe pouco a pouco à multiplicidade infinita e concreta do mundo” (JAPPE, 2012).

A relação entre arte e educação desvela, portanto, uma gama de contradições não resolvidas. Isto acontece porque ambas estão em “contato” com a política, a ciência e o amor, trazendo à tona a memória de uma série de interrupções ambíguas, o déjà-vu de uma revolução esquecida, apagada, que nunca terminou de se realizar porque se emaranha e se confunde com as estruturas sociais do capitalismo (MEDINA, 2010).

Como dispor conhecimentos de maneira que a “verdade” da arte se estabeleça?

Talvez possamos começar tentando criar condições para o aparecimento de zonas de irresponsabilidade.

Zonas em que as divisões hierárquicas do perceptível sejam refutadas, a política seja substituída por uma configuração do mundo sensível e a esperança da emancipação mantenha-se no horizonte (RANCIÈRE, 2005).

Essas zonas de irresponsabilidade podem vir a instaurar fendas e dobras no sistema que só vão poder ser identificadas retroativamente e que, nesse movimento, vão alterar as próprias coordenadas em que surgiram.

Podem fazer emergir promessas de realização de um novo mundo, fundamentadas na negatividade que se espalha na violência contraditória da contemporaneidade (BENOIT, 2004) e que por isso são impossíveis de serem satisfeitas no presente.

Algumas dessas promessas poderão ser chamadas de arte. Ou de política. Ou ainda de educação.

 

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Tradução: Artur Mourão. Lisboa: Edições 70 Ltda, 1970.

–––––– ; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução: Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

AGAMBEM, Giorgio. O uso dos corpos [Homo Sacer, IV, 2]. Tradução: Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2017.

BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. Tradução: Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

BENJAMIN, Walter. “Central Park”. Tradução para o inglês: Lloyd Spencer. In: New German Critique 34, Winter 1985.

BENOIT, Alcides Hector R. “As raízes (gregas) do Brasil”. In: Contravento. Volume 2, Novembro, 2004.

BUCK-MORSS, Susan. Walter Benjamin: escritor revolucionário. Tradução para o espanhol: Mariano López Seoane. Buenos Aires: Interzona Editora S.A., 2005.

CANDIDO, Antonio. “A literatura e a formação do homem”, em Ciência e Cultura, São Paulo, v. 24, pp. 803-809, 1972.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas em Epítome. Vol. I. Tradução: Artur Mourão. Lisboa: Edições 70 Ltda., 1969.

JAPPE, Anselm. “Fin de la révolution et fin de la fin de l’art?” In: Desformas: Sessão Especial / A formação e a Espada, São Paulo. Trabalho não publicado, 2012.

JOHNSON, Steven. Emergência: a vida integrada de formigas, cidades e softwares. Tradução: Maria Carmelita Pádua Dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

JOYCE, James. Retrato do artista quando jovem. Tradução: José Geraldo Vieira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

MARX, Karl. O Capital: Livro 1. Posfácio à 2ª edição alemã (1863). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/ocapital-v1/prefacioseposfacios.htm. Acesso em: 11 de Jul. 2019

MEDINA, Cuauhtémoc. “Contemp(t)orary: eleven theses”. In: E-flux journal, no 12, janeiro 2010. Disponível em: http://worker01.e-flux.com/pdf/article_8888103.pdf. Acesso em: 11 de Jul. 2019.

POLÊMICA Antonio Candido x Haroldo de Campos. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo6163/polemica-antonio-candido-x-haroldo-de-campos. Acesso em: 11 de Jul. 2019. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Tradução: Mônica Costa Netto. São Paulo: Exo/Editora 34, 2005.

ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. Tradução: Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.

––––––. Bem-vindo ao deserto do real! Tradução: Paulo Cesar Castanheira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

Statement do júri de premiação do 3º Prêmio seLecT Carmem Silva (Fotos: Fernando Banzi)

Statement do júri de premiação do 3º Prêmio seLecT

Paula Alzugaray, Heloisa Buarque de Hollanda, Diane Lima e Valéria Toloi definem os finalistas do Prêmio seLecT de Arte Educação

O Júri de Premiação, integrado por Paula Alzugaray, curadora e criadora do Prêmio seLecT de Arte e Educação, Heloisa Buarque de Hollanda, professora da UFRJ, pioneira dos estudos feministas e da conexão da universidade com as periferias, Diane Lima, curadora independente e mestre em Comunicação e Semiótica e Valéria Toloi, gerente de Educação do Itaú Cultural,  reuniu-se no dia 21 de setembro, pela Internet, para definir os premiados nas categorias Artista e Formador e também os contemplados com o prêmio de fomento Arapuru, finalizando um logo processo de discussões e escuta iniciado em julho, que envolveu o trabalho de seleção dos indicados ao prêmio, a definição dos finalistas, e o seminário com o debate de seus trabalhos com o júri.

A camisa educação vencedora deste ano, feita em parceria por Andrea Hygino e Luiza Coimbra, resume a motivação desse esforço: a educação é a saída de emergência.

Aprendemos muito com os 11 finalistas desta edição do prêmio.

Aprendemos, por exemplo, a escutar outras vozes, com as traduções musicais de Anne Magalhães para libras e com o podcast De Hoje a 8 de Eduarda Gama Canto e seus parceiros.

Aprendemos, também, a operar na chave de uma pedagogia do lixo e das estéticas da possibilidade, que transcende os limites dos corpos e corpas com Vicenta Perrotta e Lara Ovídio de Medeiros Rodrigues. Alargamos nossos horizontes sobre a cultura contemporânea indígena com Gustavo Caboco e Anápuáka Muniz Tupinambá, que nos reeducam para dinâmicas de convívio com posturas descoloniais frente aos cânones tradicionais.

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Essa diretriz é estruturante do trabalho das Políticas da Desobediência de Tarcísio Almeida, que atua a partir do contexto da universidade pública (UFRB), e da Galeria Reocupa junto ao MSTC, pelo embate com a cidade e suas disputas não só narrativas, mas também pelo direito à moradia e à vida. Descolonizar é preciso e isso passa por ocupar outros espaços, como a água de nossos rios, em outros formatos expositivos com e para outros públicos, conforme nos mostrou André Vitor Brandäo da Silva, idealizador e curador da Mostra Flutuante no rio São Francisco.

Temos que ser capazes de criar outras relações de aprendizado e de escuta, que impliquem o toque, a descoberta da dor do outro pelo corpo e pela pele, pautas centrais no trabalho de Renata Aparecida Felinto e Antonio Tarsis de Jesus Miranda.

No Prêmio de Fomento Arapuru, o Júri escolheu, na categoria artista, a educadora artista, Renata Felinto, cuja obra combina procedimentos relacionais da cultura africana a exercícios reflexivos e sensórios, em práticas poéticas do cuidado de si como movimento de despertar-se para o outro.

Nessa categoria, artistas, do Prêmio seLecT, destacamos e premiamos o trabalho de Gustavo Caboco, que por meio de um delicado trabalho de pesquisa no campo da história oral, reencontra sua identidade ancestral indígena. Ao consolidar seu projeto em um livro, objeto cultural que volta a ser alvo de ataque, como é peculiar aos governos mais autoritários, Gustavo aponta para formas de politização da sensibilidade e de descolonização do imaginário coletivo. Baaraz Kawau – Campo após o fogo, é o seu título, que funciona como um ensaio de resposta ao contexto de devastação e destruição de memória e futuros que vivemos… desde o incêndio do museu nacional até a invasão de reservas indígenas.

Na categoria de formadores, inaugurando o prêmio de fomento Arapuru da categoria dos formadores, o Júri  contempla o trabalho da Galeria Reocupa, destacando seu caráter ímpar de articulação entre a cultura e a política, a partir do fazer coletivo em defesa do direito à moradia e de uma rede intersocial de agentes comprometidos com a necessidade de mudanças das estruturas de posse e propriedade mais arraigadas da sociedade brasileira.

Nessa mesma categoria, foi escolhido, para o Prêmio seLecT o projeto De Hoje a 8, podcast de literatura focado na produção cultural do Recôncavo Baiano e na literatura africana lusófona, aqui representado por uma de suas criadoras, Eduarda Gama Canto. Pelo seu enfoque regional e sua inventividade de ocupar a cidade com alto-falantes nos postes e um espaço em uma rádio local, o podcast sinaliza formas de reinvenção da palavra e da comunicação, por meio de uma pedagogia radical da generosidade intelectual.

A todos os participantes ficam nossos mais sinceros e felizes agradecimentos. Como dizia nosso educador maior, Paulo Freire, “A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca”. Não parem.

Por uma reescrita coletiva do conhecimento Sepake Angiama (Foto; Vanley Burke)

Por uma reescrita coletiva do conhecimento

A curadora Sepake Angiama fala sobre a importância de desaprender para reprogramar o aprendizado

Nathalia Lavigne

A curadora e educadora Sepake Angiama costuma citar com frequência como desaprender se tornou um dos processos mais importantes em sua formação. Comparando ao gesto da tecelagem, “um desenrolar e desvendar contínuos”, ela parte dessa ideia para reavaliar a origem de uma educação quase sempre moldada pelo patriarcado imperial, escravizado e baseado em classes, que nem sempre é fácil de diagnosticar. “Desaprender é um processo contínuo para mim. É pessoal e se estende às instituições também”, diz à seLecT.

Sepake Angiama foi curadora de Educação da documenta 14 e tinha recém-assumido a direção artística do Institute for International Visual Art (Iniva), em Londres, quando o lockdown foi decretado na cidade. Fundado em 1994 por Stuart Hall, criador do campo dos Estudos Culturais no Reino Unido, a organização se firmou como um dos espaços mais inclusivos na cena de arte contemporânea naquele país, dedicando-se especialmente a artistas da diáspora africana e asiática. Nesta entrevista, ela fala também sobre sua atuação como uma das curadoras da última Bienal de Arquitetura de Chicago, junto com Paulo Tavares, edição que dedicou grande atenção a São Paulo e uma sala especial à Ocupação Nove de Julho, no Centro da cidade.

A curadora e educadora é palestrante do encerramento do 3º Seminário seLecT de Arte e Educação, transmitido ao vivo na terça-feira, 22/9, às 16h, na plataforma da seLecT no Youtube. O seminário é a terceira etapa do Prêmio seLecT de Arte e Educação, uma iniciativa organizada pela revista seLecT desde 2017, criada para valorizar e incentivar escolas, instituições de arte, espaços de ensino, projetos artísticos colaborativos e iniciativas inovadoras e experimentais que favoreçam os diálogos e os vínculos entre arte e educação. A terceira edição tem correalização do Itaú Cultural, apoio da galeria Almeida e Dale, parceria da galeria A Gentil Carioca e da Arapuru London Dry Gin.

seLecT: Você assumiu recentemente a função de diretora artística do Institute for International Visual Art (Iniva), em Londres. Quais os desafios de começar esse trabalho quando os museus já se encontravam fechados? 

Sepake Angiama: Acho que liderar uma organização de artes visuais é um desafio a qualquer momento. Mas fiquei bastante impressionada com a forma como a instituição pode se adaptar com flexibilidade e ainda encontrar maneiras de se manter próxima do público, embora agora digitalmente. A beleza desse momento é a expressão de uma abertura radical que talvez tenha permitido que importantes conversas acontecessem. Tivemos a oportunidade de trazer palestrantes e um público mais internacionais porque estávamos operando on-line. Mas também parece que há tanta conversa acontecendo que é difícil sintonizar e ouvir. Depois de seis meses trabalhando remotamente de nossas casas e longe da Biblioteca Stuart Hall, sentimos que é importante voltar à fonte, que é a inspiração para grande parte do nosso trabalho. Após todo esse tempo trabalhando só no mundo digital, estamos prontos para alguma atividade analógica. Estou sentido falta das visitas aos ateliês dos artistas, de visitar exposições e a oportunidade de encontrar pessoas aleatoriamente. Agora todos nossos movimentos são meticulosamente planejados: aonde você vai, com quem se encontra. Há um elemento de espontaneidade que se perde. Não podemos esquecer que grande parte do mundo da arte também opera no nível do boato e da fofoca. As conversas casuais são uma das mais produtivas e frutíferas para alimentar ideias.

Os protestos do Black Lives Matter (BLM), em maio, fortaleceram movimentos on-line como o #decolonizethismuseum e também aumentaram a cobrança sobre como as instituições de arte devem responder a essa questão. Por exemplo, grandes museus como o Metropolitan Museum of Art foram criticados por terem mencionado o movimento só algum tempo depois. Como você vê a forma com que os museus tem lidado com o tema do racismo e o que vocês têm procurado fazer na Iniva?

Em primeiro lugar, é importante reconhecer que o movimento BLM é parte de um continuum com raízes na primeira revolução importante na luta pela liberdade negra, no Haiti. Uma luta constante pelo reconhecimento e valorização da vida humana. Um chamado para acordar, uma postura conjunta, uma marcha contra todas as probabilidades de que a mudança não é apenas necessária, mas urgente. Temos que reconhecer o papel que os museus, em geral, desempenham na manutenção do status quo. Como todas as instituições, eles também alimentam uma cultura de dominação, detêm um status de poder e tudo o que visa ameaça-lo é menosprezado e silenciado. O trabalho de organizações de base, como BLM, mostrou que se pode criar um movimento de mudança em todo o mundo e as conversas que deveriam estar acontecendo estão finalmente acontecendo. O que importa, não é apenas o reconhecimento de vozes que foram marginalizadas, mas como compartilhar energia, tempo e recursos radicalmente para que nossas instituições reflitam as necessidades de nossa comunidade. Precisamos nos unir para ter conversas difíceis, encontrar novas intimidades – às vezes sem dizer nada, às vezes descobrindo o que significa fazer o trabalho. Queremos construir uma visão coletiva e uma missão compartilhada que reúna artistas e suas comunidades para perguntar o que queremos fazer juntos. Temos feito perguntas a nós mesmos e nos reunido com outras instituições de pequena escala, como nós, para fazer exatamente isso. A Iniva faz parte da Common Practice, que pretende ser um espaço onde podemos ter essas conversas. Por meio de alguns dos treinamentos que oferecemos para todos os funcionários, estamos procurando formar comitês de trabalho. Trata-se de defender em seu setor aqueles que você acredita que têm o poder e os recursos para fazer as mudanças. Acredito que as revoluções lentas podem ser tão radicais quanto uma virada brusca.

No início da pandemia, alguns museus dispensaram suas equipes do setor de educação, em vez de treiná-las para migrar as atividades para o on-line. Qual a sua opinião sobre esses episódios e o que acha que deveria ter sido feito?

Bem, este é definitivamente um momento difícil para tomar qualquer decisão. Acredito que cultura e educação combinadas constituem o ativo mais valioso para qualquer organização. Alguns podem dizer que a coleção é o patrimônio mais valioso, mas o que são esses espaços sem o diálogo e o engajamento com as histórias, narrativas e epistemologias que os cercam? Claro, podemos pensar em um milhão de possibilidades de como trabalhar com equipes de educação. Como educadora, tive dificuldade em me conectar com meus alunos on-line no início do isolamento, mas estamos explorando como pode existir uma intimidade digital nesse aprendizado. Abrimos caminho e, em alguns casos, acho que a conexão pelo menos entre os alunos ficou mais forte. Alguns encontraram maneiras de usar ferramentas de jogos para recriar ambientes analógicos. Agora, mais do que nunca, temos que centralizar o bem-estar em nossas vidas. Também precisamos desenvolver novas linguagens de cuidado, isso é algo que estou aprendendo com uma artista com quem estou trabalhando no momento, Jade Monseratt. Para realmente pensar na criação de uma infraestrutura de cuidado, é preciso considerar todos os aspectos do que significa ser um curador, um cuidado com a obra, um cuidado com o artista e também um cuidado com a linguagem e como nos comunicamos com o outro. Muitos foram sacrificados para salvar a instituição. É um equilíbrio fino e delicado de encontrar maneiras de sobreviver. Em alguns casos, se a instituição não puder ser revivida, sofreremos perdas em todos os aspectos.

Entre as iniciativas de museus, estão campanhas colaborativas em redes sociais, como desafios de desenhos ou pedindo às pessoas que reencenem versões de obras de arte em suas casas. Muitos estão reunidos na hashtag #betweenartandquarentine, criada pelo Rijksmuseum, mas seguida por outras instituições. Acredita que esse tipo de iniciativa é válida para democratizar a arte e torná-la coletiva?

Primeiro devemos perguntar se o objetivo dessas iniciativas é tornar a arte democrática e coletiva. Não sei sobre os programas específicos que você mencionou, mas uma das coisas que tenho gostado é a energia criativa coletiva que tem sido explorada em nossos vários locais e deslocamentos. E não me refiro apenas à atividade que museus e galerias oferecem. Sinto que, em alguns casos, no início do isolamento, as pessoas estavam se conectando de maneiras diferentes. Cozinhando, cuidando do jardim, dançando, lendo… Sinto que tem havido muita partilha e energia criativa, mas não para todos porque, como sabemos, o isolamento também revelou algumas disparidade e a iniquidade em nossa sociedade. Então é difícil falar do democrático ou do coletivo, quando já começamos a ver as fissuras que nos dividem.

A noção de desaprendizagem é algo que parece ter um papel muito importante na sua prática. Você poderia descrever a importância dessa ideia na educação?

Desaprender é um processo contínuo para mim. É pessoal e se estende às instituições também. Reconhece que nossa educação nasce do patriarcado imperial, colonial, escravizado e baseado em classes. Como você encontra sua voz em tudo isso? Quais são as histórias, narrativas e etimologias que nos foram negadas? Quem foi silenciado e por quem? De quem é a voz que você realmente carrega? Desaprender é como uma tecelagem – um desenrolar e desvendar contínuos, desvendando emaranhados que nos ajudam a valorizar e potencialmente até ver outras perspectivas diferentes das nossas. É pessoal porque reside no trauma de seu DNA. Então, para descobrir tudo isso, é preciso humildade, abertura, intimidade, encontrar outras maneiras de ser, de saber. Como diria Sylvia Wynter, seria necessária uma reescrita coletiva do conhecimento.

São Paulo foi uma das quatro cidades que teve destaque na terceira edição da Bienal de Arquitetura de Chicago, que teve uma sala dedicada à Ocupação Nove de Julho. Você poderia falar sobre a importância desse projeto para a concepção curatorial sobre narrativas apagadas de territórios?

Fiz parte da equipe curatorial da terceira Bienal de Arquitetura de Chicago que incluiu Yesomi Umolu (diretor artístico) e Paulo Tavares (co-curador) em 2017. Mas no ano que antecedeu a bienal nós planejamos um programa de pesquisa para alimentar os tópicos da exposição, educação e programa público chamado Unlearning Geographies. A pesquisa começou em Chicago e nos levou a São Paulo, Joanesburgo e Vancouver. Uma das questões abordadas em nossa pesquisa no Brasil era entender o que significa para um edifício ter o direito constitucional a uma função social. Como isso se manifesta e dá voz às pessoas que servem a cidade, mas não têm acesso a recursos para viver no centro. Conhecemos as mulheres mais incríveis do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), liderado por Carmen Silva, que concretizou seu direito de lutar por uma vida digna para comunidades e famílias de baixa renda do centro da cidade. O que aprendemos com Carmen e com o movimento é que o ativismo pode transformar a cidade e questionar o que significa ter direito a ela. Não como uma visão utópica, mas para que todos possam reconhecer o que significa ser poderoso como uma massa crítica que rearticula a cidade como forma de pedagogia a ser negociada e transformar as pessoas.

Programação do 3º Seminário de Arte e Educação

Programação do 3º Seminário de Arte e Educação

Com palestras de Luis Camnitzer, Dora Longo Bahia, Tainá de Paula e Sepake Angiama, o evento virtual é a última etapa de seleção do 3º Prêmio seLecT, em que os onze finalistas apresentam seus trabalhos 

Cerca de 700 artistas e formadores de 26 estados brasileiros se inscreveram no 3º Prêmio seLecT de Arte e Educação entre 1º de junho e 31 de julho de 2020. Duas fases de seleção dos projetos já ocorreram, restando apenas a última delas. Trata-se do 3º Seminário seLecT de Arte e Educação, que ocorre nos dias 15, 16, 17 e 22 de setembro, virtualmente, pelas plataformas digitais da revista seLecT. No evento, serão apresentados e discutidos os onze trabalhos finalistas e ocorrerão palestras de pesquisadores convidados. Gratuito, o seminário é voltado para estudantes, artistas, pesquisadores, outros interessados e especialistas da área.

Na primeira fase de avaliação do 3º Prêmio seLecT, coube à Comissão de Seleção, formada por Luana Fortes, Moacir dos Anjos, Renata Bittencourt e presidida por Giselle Beiguelman, pré-selecionar 23 projetos – 20 das categorias Artista e Formador e 3 da categoria Camisa Educação –, dentre os inscritos. Na segunda fase, as obras pré-selecionadas pela Comissão de Seleção foram conhecidas, analisadas e discutidas pela Comissão de Premiação, também presidida por Giselle Beiguelman, integrada por Diane Lima, Heloisa Buarque de Hollanda, Paula Alzugaray e Valéria Toloi, que selecionaram o vencedor da categoria Camisa Educação e os onze projetos finalistas – cinco na categoria Artista e cinco na categoria Formador – a serem apresentados pelos proponentes na terceira fase.

Como abertura do seminário, que acontece na terça-feira 15 de setembro, às 16 horas, a palestra The New Man, com Luis Camnitzer, em que o artista, curador e professor procurará recontextualizar para os dias de hoje os comentários feitos por Che Guevara sobre as relações entre arte e sociedade. No mesmo dia, às 17 horas, acontece também a palestra Arte e Educação: Relação ou Contato – a Articulação de Zonas de Irresponsabilidade como Princípio de Formação Artística, com a artista e professora Dora Longo Bahia. Ambas mediadas pelo pesquisador Cayo Honorato, as palestras serão transmitidas ao vivo pelos canais do YouTube e do Facebook da revista seLecT, com tradução simultânea e interpretação em libras. 

Nos dias 16 e 17 de setembro, quarta e quinta-feira, das 16 às 18 horas, os onze proponentes finalistas apresentarão seus projetos, de maneira mais detalhada, aos membros da Comissão de Premiação e ao público. Essas apresentações ocorrerão via sala de videoconferência no Zoom e poderão ser assistidas de forma simultânea e gratuita mediante inscrição prévia (Para se inscrever, clique aqui para as apresentações dos artistas e aqui para as apresentações dos formadores!). As gravações dessas apresentações também serão disponibilizadas nas redes da revista seLecT e do Prêmio seLecT na sexta-feira 18/9.


Na terça-feira da semana seguinte, 22 de setembro, às 16 horas, acontecem as palestras de encerramento do Seminário, com a curadora e educadora Sepake Angiama e com a arquiteta e urbanista, ativista das lutas urbanas e mobilizadora popular Tainá de Paula, também mediadas por Cayo Honorato e transmitidas ao vivo pelos canais da revista seLecT no YouTube e no Facebook, com tradução simultânea e interpretação em libras. Logo depois, às 18 horas, acontece, enfim, o anúncio dos premiados do 3º Prêmio seLecT de Arte e Educação, nas categorias Artista e Formador, que receberão R$ 20.000,00 cada um, a dupla premiada já divulgada Andréa Hygino e Luiza Coimbra da categoria Camisa Educação, que terá seu projeto executado e lançado pela Galeria A Gentil Carioca e os premiados da mais nova categoria Arapuru.  

O Prêmio seLecT tem a satisfação de anunciar a grande novidade desta edição, uma nova categoria de premiação em dinheiro, graças ao apoio do Arapuru London Dry Gin. Para o desenvolvimento futuro dos projetos finalistas do Prêmio seLecT, a marca de bebidas destinará o valor de R$6.000,00 para um artista finalista e de R$6.000,00 para um formador finalista, que serão distribuídos periodicamente, a partir de um percentual extraído da venda de garrafas. Os dois premiados nesta categoria também serão escolhidos pelo Júri de Premiação.

 

Conheça os palestrantes

Luis Camnitzer é artista, curador e professor. Nascido na Alemanha em 1937, emigrou para o Uruguai com apenas 1 ano de idade. É graduado em escultura pela Escola Nacional de Belas Artes da Universidade da República do Uruguai. Já recebeu prêmios importantes, como o Prêmio Frank Jewitt Mather (2011), da College Art Association dos Estados Unidos, o Prêmio Grabador Emérito (2011), da Southern Graphic Conference International, e o Prêmio USA Ford Fellow (2012). Suas obras integram coleções como as do MoMA-NY, a do Museu Reina Sofía, em Madri, e a da Tate Gallery, em Londres. Participou de exposições como a Bienal de Veneza, a Bienal de São Paulo e do Museu Reina Sofía. Além disso, foi curador de artistas emergentes no The Drawing Center, em Nova York, de 1999 a 2006, curador pedagógico da 6ª Bienal do Mercosul, curador pedagógico da Fundação Iberê Camargo, de 2007 a 2010, e assessor pedagógico da Coleção Patricia Phelps de Cisneros. Atualmente, vive e trabalha em Nova York, onde atua como professor emérito da Universidade do Estado de Nova York.

Dora Longo Bahia é artista e doutora em Poéticas Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), com pós-doutorado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP). Atualmente, é professora no Curso de Artes Visuais da ECA-USP e coordenadora do grupo de pesquisa Depois do Fim da Arte. Suas obras se desdobram em vários suportes, como pintura, fotografia, instalações sonoras, filmes e livros. A partir do fim dos anos 1980, quando se graduou em Educação Artística pela Faap, participou de exposições e festivais nacionais e internacionais e recebeu diversos prêmios. Entre eles, o 7º Prêmio Marcantonio Vilaça, em 2019, e a Bolsa Zum/IMS, em 2016. Participou, em 2019, da Bienal Sur, em Buenos Aires, em 2018, da 9ª Bienal de Busan-Divided We Stand, na Coreia do Sul, e do 35º Panorama da Arte Brasileira, em 2017. 

Sepake Angiama é diretora artística do Institute for International Visual Art em Londres. Atua como curadora e educadora, cuja práxis se encontra no âmbito discursivo e social, a fim de reescrever coletivamente o entendimento sobre o mundo. Isso a inspirou a trabalhar com artistas que perturbam e provocam aspectos da esfera social por meio de ações e outras formas radicais de pedagogia e arquitetura. Quando coordenadora de Educação da Documenta 14, deu início ao projeto Under the Mango Tree – uma reunião auto-organizada de práticas de desaprender. A segunda edição (Visva Bharati, Santineketan) reuniu espaços geridos por artistas, livrarias e escolas interessadas no desenvolvimento de discursos em torno da descolonização de práticas educativas que desestabilizam o cânone europeu, por meio da análise de epistemologias alternativas, noções de desaprender e conhecimentos indígenas. A próxima edição do projeto Under the Mango Tree ocorrerá em Porto Rico, em 2022, com foco em epistemologias indígenas, aprendizagem land based e artesanato. Angiama foi também coordenadora de Educação da Manifesta 10, no Hermitage Museum, em São Petersburgo. Sua pesquisa Her Imaginary endereça como a ficção científica, o feminismo e formas sociais de arquitetura podem aproveitar as ferramentas perfeitas para capturar uma pedagogia da imaginação social e política.

 

Tainá de Paula é arquiteta e urbanista, ativista das lutas urbanas. Atuou em diversos projetos de urbanização e habitação popular, realizando assistência técnica para movimentos de luta pela moradia como União de Moradia Popular (UMP) e Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST). Hoje presta assistência para o movimento Bairro a Bairro, onde atua como arquiteta e como mobilizadora comunitária em áreas periféricas.

Cayo Honorato é professor no Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília, doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, mestre em Educação e bacharel em Artes Visuais pela Universidade Federal de Goiás. Integra a rede Another Roadmap for Arts Education desde 2015. É pesquisador associado do Centre for the Study of the Networked Image da London South Bank University, no Reino Unido, desde 2018.

 

Conheça a dupla premiada da categoria Camisa Educação

Andréa Hygino e Luiza Coimbra (Rio de Janeiro, RJ) propuseram para a categoria especial Camisa Educação o projeto Saída de Emergência, que relaciona a educação à imagem de uma escada ascendente.

 

Conheça os finalistas

ARTISTAS

Anápuáka Muniz Tupinambá Hã hã hãe (Rio de Janeiro, RJ) inscreveu o “YBY Festival de Música Indígena Contemporânea”, um projeto que promoveu mais de 30 apresentações musicais indígenas, realizado em novembro de 2019 por um grupo de comunicadores, produtores, músicos e ativistas da causa indígena, que reuniu mais de 3 mil pessoas de mais de 50 etnias.

Anne Magalhães (São Paulo, SP) inscreveu o “Arte na Janela”, um projeto que pretende forçar os limites e encontrar os alinhamentos possíveis entre as artes do corpo e a língua dos sinais, por meio do registro e publicação de interpretação de músicas e poesias. 

Antonio Tarsis de Jesus Miranda (Salvador, BA) inscreveu “Genocídio Simbólico”, uma série de objetos e bordados que tratam sobre o apagamento do aspecto bélico e da simbologia de extermínio presente em brasões militares em oposição à imagem da segurança pública.

Gustavo Caboco (Curitiba, PR) inscreveu “Baaraz Kawau – Campo após o fogo”, uma publicação de fundo autobiográfico feita em resposta à atualização da memória dos povos Wapichana como uma proposta de diálogo com as atualidades indígenas. 

Renata Aparecida Felinto dos Santos (Crato, CE) inscreveu “AMOR-Tecimento”, um trabalho de oficina com culminância em uma performance que busca resgatar o olhar amoroso e empático sobre os corpos de pessoas negras.  

 

FORMADORES

André Vitor Brandão da Silva (Petrolina, PE) inscreveu “Mostra Flutuante de Artes Visuais”, um espaço de formação de artistas e de públicos no Vale do São Francisco organizado em torno de uma exposição feita em um barco que transita entre as margens de Petrolina e Juazeiro.

Eduarda Gama Canto (Cachoeira, BA) inscreveu “De Hoje a Oito”, um programa literário de rádio e podcast construído envolvendo escritoras/es do Recôncavo da Bahia e promovendo o engajamento com fazedoras/es culturais da região.

Galeria REOCUPA (São Paulo, SP) inscreveu “O que não é floresta é prisão política”, exposição coletiva realizada na Ocupação 9 de Julho, feita através de trocas e convívios entre uma rede de artistas, integrantes do Movimento Sem Teto do Centro e moradores da Ocupação.

Lara Ovídio de Medeiros Rodrigues (Baixada Fluminense, RJ) inscreveu “Revista VAN”, uma publicação semestral que surgiu da necessidade de produzir imagens de moda que dialoguem com a Baixada Fluminense e compila imagens realizadas pelos estudantes do Curso Técnico de Produção de Moda na disciplina Editoriais de Moda. 

Tarcisio Almeida (Salvador, BA) inscreveu “Práticas Desobedientes”, um programa de formação para jovens artistas com foco em aprendizagem coletiva e pedagogias libertárias, fruto das ações de extensão da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

Vicenta Perrotta Neto (São Paulo, SP) inscreveu “Arte, Cultura e Costura”, projeto de formação idealizado em parceria com o Coletivo Ateliê TRANSmoras e o Instituto Tomie Ohtake, em busca por linguagens que estimulem o desenvolvimento pessoal e o autoconhecimento de mulheres em situação de vulnerabilidade social.

 

SERVIÇO
3º Seminário seLecT Arte e Educação
15, 16, 17 e 22 de setembro, das 16h às 18h, online

  • Palestras de abertura com Luis Camnitzer e Dora Longo Bahia – 15/9 (terça-feira), das 16h às 18h, via plataformas digitais da revista seLecT
  • Apresentações de finalistas – 16/9 (quarta-feira) e 17/9 (quinta-feira), das 16h às 18h, via Zoom, com inscrições pelo Sympla (link para apresentações dos artistas | link para apresentações dos formadores)
  • Palestras de encerramento com Sepake Angiama e Tainá de Paula – 22/9 (terça-feira), das 16h às 18h, via plataformas digitais da revista seLecT
  • Anúncio de premiados – 22/9 (terça-feira), das 18h às 18h30, via plataformas digitais da revista seLecT