O novo homem Luis Camntizer no 3º Seminário seLecT

O novo homem

Em texto para o 3º Seminário de Arte e Educação, Luis Camnitzer recontextualiza comentários de Che Guevara sobre relações entre arte e sociedade

Luis Camnitzer

Por bem ou por mal, Che Guevara influenciou fortemente minha geração. Nunca usei uma camiseta com a imagem dele, mas prestei atenção em alguns de seus artigos e fiquei particularmente interessado quando ele falou sobre arte. Isso não acontecia com frequência, mas em “Socialismo e o Novo Homem” (sic), escrito em 1965, ele deu suas opiniões sobre o papel dos artistas na sociedade capitalista. É uma visão que em parte parece ser verdadeira mais de meio século depois, mas também com ideias que parecem românticas ou inaplicáveis, embora ainda sejam usadas hoje.

Che observou, por exemplo, que a arte e a cultura no sistema capitalista existem como uma defesa contra a “morte diária durante oito horas ou mais em que [o homem] trabalha como mercadoria, para depois ressuscitar em sua criação espiritual”, e também que a arte é uma defesa da individualidade em que as ideias estéticas contribuem para a sensação de ser único e imaculado. Tudo isso, segundo ele, é uma forma de escapar da qualidade insuportável do ambiente. R.D. Laing expressou pensamentos semelhantes alguns anos depois, quando escreveu: “Palavras em um poema, sons em movimento, ritmo no espaço, tentativa de recapturar o significado pessoal no tempo e no espaço pessoais a partir das imagens e sons de um mundo despersonalizado e desumanizado. São cabeças de ponte em território estrangeiro. São atos de insurreição.” Embora a arte e a cultura possam servir para isso, seria um exagero limitá-las a essa função.

Mais curiosamente ainda, falando sobre o artista profissional, ele escreve:

“A superestrutura força uma arte na qual os artistas devem ser educados. O maquinário subjuga os rebeldes, e apenas talentos excepcionais podem criar um trabalho próprio. O resto se torna mercenário ou é esmagado.” “A pesquisa artística é inventada para definir a liberdade, mas essa pesquisa tem limites perceptíveis apenas quando nos chocamos com eles, ou seja, quando são levantados os problemas reais do homem e sua alienação. Angústia sem sentido e passatempo trivial tornam-se válvulas de escape para o mal-estar humano: a possibilidade de uma arte de denúncia está descartada.” “Aqueles que seguem as regras recebem as homenagens; assim como poderia receber um macaco inventando piruetas. A condição é não tentar escapar da jaula invisível.”

O conceito de jaula foi posteriormente reformulado de forma incisiva por Stephen Wright em 2013, quando ele comentou: “É claro que a arte autônoma afirma regularmente que morde a mão que a alimenta; mas nunca com muita força”.

A arte não estava no topo da lista de solução de problemas de Che, e o texto do “Novo Homem” talvez contenha suas menções mais explícitas. O interesse em citá-lo aqui é porque a relação entre arte e sociedade não mudou muito no último meio século, e é revelador ouvir alguém imerso em combate político que não tem opiniões ignorantes nem dogmáticas sobre as coisas. Dependendo do ponto de vista da pessoa, a descrição de Che do artista e como os artistas se encaixam na sociedade pode ser essencialmente considerada correta, embora sua crítica ao Realismo Social e à “arte pela arte” tenha perdido relevância. Para ele, o Realismo Social é uma forma de evitar a pesquisa artística ao combinar um presente socialista com um passado estético. Ele prosseguiu, alegando que “não se pode opor realismo social a ‘liberdade’, porque isso ainda não existe e não existirá até que haja uma nova sociedade. […] Falta o desenvolvimento de um mecanismo ideológico-cultural que permita a pesquisa [artística] […].”

É aqui que Che (assim como as pessoas que pensam parecido) parece mais limitado. A arte bem empregada passa a ser o mecanismo ideológico-cultural exato necessário para uma nova sociedade livre. Ele não considerou essa possibilidade porque estava navegando pelas limitações de uma arte política baseada no conteúdo narrativo, em vez de se basear na ação. Embora estivesse tentando abrir perspectivas, ele acreditava na separação disciplinar de tarefas. Nesse sentido, o pensamento político teria papel de vanguarda e atuaria separadamente de tudo o mais. A arte estava lá para oferecer experiências e visualizar os esforços. A arte só poderia funcionar livremente enquanto os desdobramentos políticos criassem o ambiente adequado para ela. No mesmo texto, Che se queixa: “Não há artistas de grande autoridade que também tenham grande autoridade revolucionária”. Embora fosse verdade, o problema era que tampouco havia políticos com grande autoridade que também tivessem grande autoridade artística.

Che não considerou a possibilidade de que a arte pudesse ser usada para construir a liberdade que ele considerava ausente. Ou que qualquer revolução que pudesse ocorrer sem arte revolucionária e política revolucionária seria apenas parcial e, portanto, malsucedida. A política e a arte precisam trabalhar de mãos dadas a ponto de serem a mesma coisa, não apenas se ilustrarem. Na verdade, é aí que a arte se torna o componente educacional que pode redirecionar a estratégia política para ser pedagogicamente eficaz e ajudar no surgimento do “novo homem”.

Curiosamente, na mesma época que Che escrevia seu texto e mencionava a “pesquisa artística”, havia um desejo incipiente de promover a mudança para se entender a arte não como um meio de produção, mas como uma forma de processamento do conhecimento. A arte conceitual hegemônica se afastou da arte materializada e introduziu a solução de problemas, com a arte conceitualista na periferia, adicionando resistência política à mistura. O problema é que, a partir daí, os dilemas da autonomia mudaram sem serem totalmente resolvidos. Hoje trata-se de onde essa autonomia deve ser colocada, se é nos domínios do “capital cognitivo” ou da educação, com a alfabetização e a enumeração, e também quem deve ser servido por ela.

Na época de Che, seguindo sua tradição de ser artesanal, a arte era uma habilidade autônoma ou a serviço de algo. A questão de “a quem servia” era separada e reservada à análise ideológica. Hoje, a autonomia só pode ser discutida seriamente se for feita considerando todas as implicações e de uma maneira extremamente matizada. Temos que tentar entender como a mesma palavra acomoda instrumentos financeiros, frases de efeito visual espetacular, pesquisa séria na solução alternativa de problemas, construção de significados, serviço de classe e arte como prática social.

O conceito de arte de Che era mais simples e característico para pessoas fora dos círculos artísticos. Uma visão esquemática ainda estava imersa na dicotomia abstração/figuração prevalente na América Latina nos anos 1950, quando a abstração representava tanto a autonomia quanto a utopia modernista. A política deveria ser representada no conteúdo narrativo da obra de arte, algo muito mais fácil de se fazer com a figuração. Colocado desta forma, pode-se pensar que todas essas opções são ou/ou, em que uma escolha exclui todas as outras e aquelas descartadas são jogadas em uma lixeira intelectual.

Hoje pode-se dizer que nenhuma dessas reflexões sobre figuração e mensagens políticas importa muito. Mesmo que essas diferenças permanecessem relevantes, algumas delas poderiam acabar tendo um efeito cultural e muitas, não. Pode-se confiar que, se deixarmos a arte apenas acontecer como um ofício aprimorado ou como uma contribuição ao conhecimento e sem interferência racional ou orientação, ela encontrará sua própria maneira de afetar a sociedade e se instalar na cultura coletiva. Historiadores e antropólogos em um futuro distante avaliarão, então, o que realmente aconteceu. Parece, entretanto, que nesse ínterim nós trabalhamos pelo presente, e ainda é nossa responsabilidade fazer o melhor possível, uma vez que somos responsáveis por aqueles que vivem ao nosso redor.

A referência de Che à arte começa afirmando: “É na área das ideias que levam a atividades improdutivas que fica mais fácil ver a divisão entre as necessidades materiais e espirituais”. Segue-se a noção ainda predominante hoje de que arte é uma atividade de lazer. Não importa que aspecto conformando a palavra “arte” possamos escolher, ao vê-la como um meio de produção de objetos tangíveis inúteis, os resultados de alguma forma sempre recaem na área da apreciação. Devemos olhar para a arte, entendê-la e, possivelmente, apreciá-la, mesmo que não gostemos. Consequentemente, a educação artística é claramente dividida em cursos que ensinam como fazê-la e os que ensinam a apreciá-la. O bom “fazer” pode, por fim, levar a escolas de arte especializadas, com bom apreço por todas as diferentes indústrias que giram a seu redor e apoiando os produtos da arte. Em outras palavras, o foco está nas diferentes formas de como a arte apresenta sua instrumentalização, mesmo que, comparada a outras indústrias, seu nível de aplicabilidade seja baixo.

Esse foi o problema que Che enfrentou quando viu a arte como uma ferramenta para o resgate espiritual da exploração capitalista e como algo carente de liberdade em uma sociedade que começava a tornar possível a liberdade de seus cidadãos. Ele não pensou na possibilidade de ter a arte como forma de cognição ajudando nessa tarefa. Ele tampouco descreveu o que a arte poderia fazer ou parecer uma vez que a liberdade fosse alcançada. O primeiro descuido foi uma pena e o segundo, sorte. Dentro de seu conceito de arte, qualquer definição teria negado a liberdade que ele esperava.

Em vista do fracasso das revoluções políticas do século XX, a questão da função social da arte é de crescente interesse e importância. Assim como o foco em para que ela é utilizada, que é um conceito tido como certo em todos os sistemas sociais ocidentais. Deve haver um propósito prático em tudo o que fazemos, caso contrário, é luxo ou lazer. Isso condicionou o sistema educacional, fazendo-o mudar cada vez mais para a praticidade, eliminando as humanidades e as artes dos currículos e tendo que lidar com a questão de como essa coisa inútil que chamamos de arte pode ser quantificada e utilizada de forma prática. Nas sociedades capitalistas, nos últimos anos, essa inutilidade evoluiu e adquiriu valor de investimento. Os cursos de administração e consultoria artísticas estão proliferando. Na medida em que a arte é mantida nos currículos – e a maioria dos artistas hoje tem formação universitária –, os cursos de negócios e as habilidades de sobrevivência estão se tornando uma parte fundamental da formação do artista.

As galerias costumavam seguir o modelo antiquado de mercearia. Costumava-se ir à loja e comprar o que se gostasse ou precisasse. Depois de um período no formato supermercado, aperfeiçoou-se com a apresentação no estilo de feira de arte. O poder da galeria está cada vez mais concentrado nas mãos das megagalerias transnacionais, que funcionam como corretoras para mais de cem artistas cada uma. Negócios sérios de arte tornaram-se transações realizadas em papel, com certificados de autenticidade e propriedade trocados enquanto a própria arte permanece armazenada em depósitos à prova de intempéries climáticas. Enquanto isso, a pesquisa artística avança para o nível de doutorado, tornando o grau terminal mais caro, inatingível e elitista.

A inutilidade do consumo contemplativo torna-se útil por meio da economia do lazer construída em torno dele. Na arte, a “experiência” tornou-se a mercadoria que gera renda para quem tem condições de ter lazer. O processo, entretanto, não se limita ao lazer, passando a fazer parte da maioria das transações comerciais. Foi teorizado no que é chamado de “a economia da experiência”. As pessoas não trocam mais de marcas e lojas por falta de qualidade, mas pela experiência ruim ou despersonalizada proporcionada durante o processo de compra. Os clientes estão dispostos a pagar mais por um serviço eficiente e agradável em detrimento da qualidade dos produtos reais. Portanto, não é mais a obra, mas a experiência da obra que deve ser memorável. A memorabilidade da experiência é reforçada pelo espetáculo oferecido para contextualização. As pessoas então não olham para a obra, mas tiram selfies para registrar que a experiência aconteceu.

Essa situação gerou algumas resistências que se concretizaram na “arte como prática social” (incluindo a ação política) e algumas formas de pesquisa artística. Che teria apreciado ambos os aspectos, embora não correspondessem exatamente às suas expectativas. A prática social apresenta uma tendência populista e trabalha para melhorar criativamente as condições de vida na sociedade. A pesquisa artística é voltada para introduzir metodologia e teoria rigorosas no fazer artístico, atendendo principalmente ao campo da arte. O que é interessante, no entanto, é que, embora não tenham um impacto radical, esses movimentos levaram a mostrar o verdadeiro papel cultural da arte. Arte não tem a ver com objetos tangíveis, mas com uma metodologia de abordagem do conhecimento, às vezes usando objetos para esse fim, e com “criar significados”.

A “criação de significados”, entretanto, tem duas interpretações. Uma é usada na pedagogia construtivista entendida como “dar sentido” às coisas, ao colocar ordem na desordem ou ordem mal compreendida. A outra interpretação, mais ambiciosa, vai além e quer usar a arte para gerar “novos” significados. É esta que Che havia perdido. Poderia tê-lo ajudado na construção de sua utopia, o que levanta outro problema. Se criar novos significados fosse útil para construir utopias, seria contraproducente, uma vez que uma utopia não tem espaço para novos significados.

Esse foi um erro típico de muitos na geração de Che e na minha (ele era apenas nove anos mais velho que eu). Eu tive minhas próprias visões da utopia e sabia como a sociedade deveria ser. Isso me levou a me interessar por outro pensamento utópico. Aceitei alguns e rejeitei outros de acordo com a forma como combinavam com minhas crenças. Todos concordamos que o Mundo não estava funcionando e que fomos designados para melhorar a situação. O fato de estarmos onde estamos e de todas as pessoas no poder que poderiam ter ajudado a melhorar a situação serem mais jovens que eu mostra o grau de nosso fracasso. No entanto, a Utopia ajudou-me a “fazer sentido”, e usei-a na interpretação pedagógica do termo. Fazer sentido foi uma forma de pensamento crítico que ajudou a recontextualizar e rearticular meu entorno, bem como escolher as ferramentas mais adequadas para isso. Foi a sensação de que compartilhar essa utopia era socialmente útil que me fez enfocar na educação. Ao mesmo tempo envolvido em estudos de arte, trabalhei com o que aprendi lá, mas o fiz dentro das visões convencionais sobre as divisões disciplinares.

A arte nos anos 1950 era considerada um sistema de produção independente, um conjunto de ofícios com algo extra que não podia ser claramente definido. Esse extra permitia aos artistas desabafar, expressar e às vezes chocar. O desabafar tinha valor terapêutico, expressar-se ajudava na comunicação, e chocar podia ser usado para se tornar famoso ou para aumentar a conscientização. Todos os três aspectos poderiam ser calibrados para levar a sociedade a me aceitar como um grande artista ou a construir minha utopia. O fato de que qualquer uma das possibilidades seria um sinal de arrogância narcisista nem me ocorreu. O mesmo afetou meu trabalho como professor. Embora acreditasse na sala de aula horizontal, referia-me à educação como ensino, o que minava seriamente minhas teorias cuidadosamente elaboradas.

Com o passar dos anos, corrigi muitas dessas falhas. O “fazer arte” tornou-se “pensar arte” e solução criativa de problemas. “Ensinar” tornou-se trabalho em equipe e “aprender juntos”. A separação entre arte e educação tornou-se cada vez mais nebulosa, a tal ponto que hoje não vejo uma razão clara para separá-los em duas disciplinas distintas. Um ponto, porém, permaneceu problemático. Um de meus filhos me desafiou a explicar o que estava por trás das palavras “combinava com minhas ideias”.

Era algo muito simples: “combinar com minhas ideias” favorece um sistema estático construído no passado e força o futuro a se encaixar nele. A resistência à minha (ou qualquer) utopia nessas condições é compreensível. Isso não significa que minhas ideias estejam erradas. Nem significa que estou negando o direito de construir um sistema mais novo que reflita as ideias da próxima geração. Mas, no cerne disso, está a vaga questão de qual é o papel do passado em relação ao futuro. Vaga o suficiente para parecer trivial, essa questão determina nossa relação com o tempo e nossa posição em relação à ignorância. Influencia, portanto, as ideologias com as quais atuamos tanto na área pedagógica quanto na artística, e também a quem nos dirigimos.

O passado é usado como base de sustentação. Depois de identificar o que pode estar certo nessa plataforma, identificamos o que está errado, moldamos nossos valores apropriadamente e os usamos para tentar melhorar o futuro. Isso parece óbvio e “faz sentido”. No entanto, só faz sentido dentro do que sabemos. A exploração de novos parâmetros e a construção de novos significados estão impedidas. O que sabemos pertence ao passado e nossos erros não devem se tornar um legado, mas o que não sabemos pertence ao futuro, e a resposta é flexibilidade, não utopia.

Mesmo quando tenta ser progressista e utópico, o sistema educacional fica amarrado por parâmetros conhecidos. O objetivo é desenvolver competência, e a avaliação de competência não dá espaço para surpresas. Eu acredito que arte e educação são basicamente a mesma coisa, que uma pedagogia que não é criativa é uma pedagogia ruim, e uma arte que não é pedagógica é uma arte ruim, mas há uma ligeira diferença: na arte as surpresas não são apenas permitidas, mas também esperadas.

Mesmo o sistema de educação mais progressista usa palavras consagradas como portadoras de negatividade, sem contestar seu valor. “Impossibilidade” é uma, mas há muitas outras, como “ignorância”, “impraticável”, “desperdício”, “falha”, “ilógico”, etc., todas as quais são desprezadas porque não levam a maiores experiências. No entanto, embora possam não ser convenientes para a experiência vendável, são úteis para o oposto, algo que gosto de chamar de inperiência.

A palavra “experiência” vem do grego ex = fora e perior = intenção. Apesar da qualidade pessoal e subjetiva que atribuímos a ela, a experiência é como nozes para um esquilo: alcançar algo externo que então é trazido para nossas bochechas para ser consumido. Na linguagem convencional, o oposto presumido da experiência é a inexperiência, outra negativa, uma vez que se refere apenas à ausência. Se quisermos considerar a experiência como ela é, sem um valor pré-carregado, a alternativa real seria inperiência, palavra que surpreendentemente quase não existe. Em espanhol aparece como “inperiencia”, com a autoria reivindicada por Jorge Veas em 2007. Veas é um terapeuta e obstetra chileno e, em sua interpretação, a inperiência se aplica ao modo como nos relacionamos com processos internos perceptíveis e controláveis por meio da introspecção. A experiência trata de como nos relacionamos com objetos externos.

Acho inperiência mais útil quando interpretada como uma forma de enfocar as situações internas e externas. Trata-se de um processo de “insight” que não separa o interior do exterior e leva em consideração o que uma experiência pode produzir, o que é projetado na experiência e o que é projetado nos outros. Isso torna a experiência principalmente uma ação, e não um consumo. Baseia-se na responsabilidade de agir e fazer, e não em limitar-se a si mesmo na exploração dos pensamentos e sentimentos após a ingestão, assim como a capacidade e a necessidade de receber.

Em relação ao texto de Che, a liberdade, então, não é algo a ser entregue por um político para então ser experimentado. É algo a ser tomado ou criado, mas sempre influenciado, revelado e compartilhado. Como tal, constitui o fundamento da verdadeira militância, baseada em percepções compartilhadas em vez de doutrinação.

inperiencia ativa tornou-se particularmente importante hoje. Estou escrevendo este texto no meio de uma quarentena que já dura mais de quatro meses. Embora distante da vida real na prisão, a comparação é inevitável. Muito de nossa sanidade provém da introspecção e inperiência da maneira como Veas a descreveu. O confinamento das “quatro paredes” imposto pela pandemia realmente aumenta o perigo de limitar nossa inperiência à definição dele. A incidência e vivacidade do sonho multiplicou-se sensivelmente nestes poucos meses, gerando uma experiência que lembra a “Segunda Vida” e que já gerou estudos e artigos que a explicam como efeito de isolamento e falta de estímulos.

Na ausência de um público perceptível, também pode haver a tentação de voltar às formas românticas de arte que se concentram em expressões pessoais e íntimas. O público deixa de ser uma audiência e passa a ser um conceito abstrato e generalizado que pode ser facilmente ignorado por falta de confronto. Quando a sociabilização ocorre, é mediada por telas de computador, as pessoas se transformam em imagens e as performances coletivas são dominadas por saladas visuais compostas por fragmentos individualizados. Peças e shows aparecem nas redes sociais em uma nova estética inspirada no jogo “Exquisite Corpses” dos surrealistas. Música, histórias e danças compostas por unidades executadas em diferentes casas são perfeitamente costuradas para reconstruir o que poderia ter acontecido como uma performance coletiva em um palco. Um exemplo notável recente é o Lago dos Cisnes de Tchaikovsky realizado nas banheiras de membros de diferentes grupos de balé franceses.

É a diferença entre experiência e inperiência com a liberdade proporcionada por esta que explica por que há um valor negativo atribuído a palavras como “impossibilidade”, “impraticável”, “desperdício”, “ilógico”, “fracasso” e “ignorância”. A atribuição de valores predefinidos vem da ideia de experiência. Os acontecimentos têm que ser bem-sucedidos, caso contrário são “experiências ruins”. Porém, do ponto de vista das inperiências, essas palavras nada mais são do que estímulos. Impossibilidade significa que estamos pensando em um nível de imaginação mais elevado e ilimitado. Impraticável, assim como desperdício, livra-nos da aplicabilidade. Ilógico abre perspectivas ao suspender a causalidade. Falha aponta para uma incompatibilidade entre um problema inicial e uma solução que, portanto, precisa de um problema melhor formulado ou diferente. E ignorância refere-se ao campo imenso e fascinante do que não conhecemos. Está eternamente aberto para exploração, para descoberta, para mudar e criar sistemas de ordem e para nomear coisas ainda não nomeadas ou renomear aquelas que já estão. Na verdade, é o uso negativo da ignorância que limita o escopo, efeito final da educação tradicional.

A intenção negativa de todas essas palavras só ocorre quando elas são colocadas na área da aplicabilidade, ou seja, quando negociamos nossa imaginação com a realidade e encontramos os compromissos necessários. O problema é que, ao ignorar a consciência dessa etapa, também minimizamos e acabamos por perder nosso poder de imaginação. É nesse contexto que a negatividade absoluta da ignorância pode ser provavelmente mais perigosa. É a palavra mais imprecisa (podemos medir o que sabemos, mas não o que não sabemos) e é usada para rebaixar e excluir, em vez de para explorar sistemas de ordem. A educação, como normalmente vista e praticada, representa o apagamento da ignorância, não a exploração do que não sabemos ou daquilo a que não podemos ordenar. Contudo, e se a ordem de que precisamos não estiver no que foi organizado para nós, mas em algo que nós mesmos criamos? Em seu romance Borderliners, Peter Hoeg escreve:

“Organizar é reconhecer. Saber que, em um mar sem fim e desconhecido, há uma ilha em que você já pisou. Eram ilhas como essas que ela estava indicando. Com as palavras, ela havia criado para si mesma uma teia de pessoas e objetos familiares. […] Com suas listas, garantiu que tudo o que ela conheceu um dia voltaria.”

Conhecimento refere-se a um passado e à construção de um passado que nos dá uma sensação de segurança ao nos fazer aprender o que já foi nomeado e reafirmar o que é conhecido. Assim, o nomeado é integrado ao nosso conhecimento, e o mais interessante, o não nomeado, permanece encerrado na ignorância. E, então, o que ainda não se sabe só se pesquisa dentro do previsível, ou seja, o que pode ser derivado do que se sabe. É isso que o torna um processo experiencial e não inperiencial, e o que torna “imprevisível” mais uma palavra negativa. O que ainda não experimentamos foi experimentado por outros, de forma que o que se presume ter sido aprendido ocorreu por aquisição ou compartilhamento dessas experiências. Embora a Economia da Experiência só tenha assumido alguma forma teórica durante os últimos anos do século XX, é claro que a experiência, em vez da inperiência, moldou a comunicação e o comportamento por alguns séculos anteriores. Tem ajudado na construção da cultura de consumo individual atual. Na verdade, é a falta de uma metodologia clara para projetar experiências no contexto de uma pandemia o que agora está desconcertando tanto o mercado de arte quanto as instituições educacionais.

Uma vez que as experiências estão enraizadas em estímulos identificáveis, a tentação de aplicar repetibilidade e análise quantitativa é óbvia. Isso está no cerne das estatísticas e da análise de mercado. Foi também o motor de tentativas malsucedidas de quantificar as inperiências que se aplicam à arte. Notadamente entre elas, e buscando grande precisão, esteve George Birkhoff, que em 1933 propôs a fórmula M = O/C (Medida é igual a Ordem sobre Complexidade). De acordo com os cálculos de Birkhoff, a forma mais perfeita é um quadrado com M = 1,50 e lados horizontais. No entanto, ao discutir música, Birkhoff reconheceu que também se deve levar em conta o gosto e o consenso predominantes e incomensuráveis.

Mais recentemente, o físico Haroldo Ribeiro desenvolveu um algoritmo para determinar a relação entre complexidade e entropia em pinturas a fim de identificar mudanças estilísticas na História da Arte. Aplicado a 140 mil pinturas digitalizadas, o algoritmo não tem como objetivo medir a qualidade, mas ajudar na classificação de acordo com critérios formalistas. Em ambos os casos, é a mente científica experimental em busca de previsibilidade que tenta assumir tópicos não quantitativos que exploram os opostos em busca de uma utopia formalista. Felizmente, tanto a obra de Birkhoff quanto a de Ribeiro permanecem como esquisitices fúteis, assim como sistemas sociais mais ambiciosos que pretendem alcançar a imobilidade.

O que podemos ter aprendido com o vírus é que nossa relação com a tangibilidade direta e a experimentação tradicional é muito frágil. O Novo Homem não surgirá de uma confiança na quantificação. Se for o caso, as mudanças ocorrerão a partir de uma educação que reconsidera e equilibra a experiência com a força de nossos insights e inperiências, buscando fazer disto o foco. Poderá, assim, abrir a possibilidade de gerar novos significados e ordens e, portanto, o que poderemos chamar de “Pessoa [constantemente] Nova e Criativa”.

1 R.D. Laing, The Politics of Experience, Ballantine Books, 1971 (1967), p. 43-44.
2 Stephen Wright, Toward a Lexicon of Usership, p. 12, https://museumarteutil.net/wp-content/uploads/2013/12/Toward-a-lexicon-of-usership.pdf, acessado em 14/07/2020
3  Joseph Pine e James Gilmore, “Welcome to the Experience Economy,” Harvard  Business Review, jul.-ago. 1998,  https://hbr.org/1998/07/welcome-to-the-experience-economy, acessado em 12/07/2020
https://medicinayemocion.blogspot.com/2007/03/experiencia-o-inperiencia.html?fbclid=IwAR1ABWuVK2JcVRg9fdWycpExz8O3OVcYr3CJhQBESPNyNYOf3fBsBPldphE acessado em 12/ 07/2020.
5  Peter Hoeg, Borderliners, Farrar, Strauss and Giroux, 2013
6 George Birkhoff, Aesthetic Measure, Harvard University Press, 1933, p. 47 
7  Ibid. p.11
8  Jess Romeo, “Entropy in Art”, Scientific American 04/2019, p. 16

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Luis Camnitzer é artista, curador e professor. Foi curador de artistas emergentes no The Drawing Center, em Nova York; curador pedagógico da 6ª Bienal do Mercosul, curador pedagógico da Fundação Iberê Camargo, e assessor pedagógico da Coleção Patricia Phelps de Cisneros. Vive e trabalha em Nova York, onde atua como professor emérito da Universidade do Estado de Nova York