Arte e educação: relação ou contato Fotos: Divulgação

Arte e educação: relação ou contato

Palestra de Dora Longo Bahia para o Seminário seLecT de Arte e Educação

Dora Longo Bahia

Vou tentar estabelecer aqui uma reflexão sobre as contradições presentes na arte, na educação e na relação – ou contato – entre elas. Vou partir do método dialético para investigar os materiais que produzem algumas dessas contradições, fazendo uso de alguns conceitos filosóficos, que vão ser apresentados aqui de forma rápida, como imagens-conceitos. Contrapondo-os a algumas imagens-imagens espero incitar um debate crítico sobre o assunto.

O termo “dialética” é geralmente usado para descrever um método de argumento filosófico que envolve algum tipo de processo contraditório entre lados opostos. A versão clássica da dialética, é aquela utilizada por Platão.

O filósofo grego apresenta seus argumentos filosóficos por meio de um diálogo ou debate, geralmente entre o personagem de Sócrates, de um lado, e alguma pessoa ou grupo de pessoas a quem Sócrates estava se dirigindo (seus interlocutores), do outro.

Enquanto os “lados opostos” de Platão eram pessoas (Sócrates e seus interlocutores), para o filósofo alemão G. W. F. Hegel, eles dependem do assunto que está sendo tratado.

Os “lados opostos” podem ser definições diferentes de conceitos lógicos que são opostos entre si ou diferentes definições da consciência e do objeto que ela afirma conhecer.

O método dialético hegeliano é posteriormente subvertido por Karl Marx, que propõe um método não apenas diferente do de Hegel, mas exatamente oposto a ele.

No Posfácio à 2ª edição alemã do Capital, Marx explica:

“Para Hegel, o movimento do pensamento – que ele personifica com o nome de Ideia – é o demiurgo da realidade, que não é senão a forma fenomenal da Ideia. Para mim, pelo contrário, o movimento do pensamento é apenas o reflexo do movimento real, transposto e traduzido no cérebro do homem” (MARX, Posfácio à 2ª edição alemã [1863]).

Marx destaca, a despeito do misticismo que denuncia em Hegel, a dialética como núcleo racional de seu pensamento. Vira a dialética hegeliana ao avesso, assumindo o ponto de vista do proletariado como sujeito histórico concreto – portador da possibilidade do devir – e a partir disso elabora sua perspectiva revolucionária.

O fundamento de indeterminação que Marx identifica na classe trabalhadora a capacita a agir pela dissolução de todas as classes e levar as relações sociais à superação do caráter de antagonismo que as define.

Marx passa a caracterizar a dialética não apenas como forma de pensamento que captura o desenvolvimento daquilo que é – como em Hegel – mas como a forma de desenvolvimento da história que, quando capturada pelo pensamento, a torna revolucionária em si mesma.

Adorno e Horkheimer, por sua vez, usam o método dialético para estabelecer uma crítica feroz da sociedade ocidental contemporânea e da relação entre industrialização e arte.

Na Dialética do Esclarecimento, escrita em 1944, durante os anos de exílio nos Estados Unidos, os autores desenvolvem uma teoria social crítica, lendo Marx como um materialista hegeliano, cuja crítica ao capitalismo incluiria inevitavelmente uma crítica às ideologias que o capitalismo sustenta e exige.

A Dialética do Esclarecimento começa com uma avaliação sombria do Ocidente moderno:

“No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal” (ADORNO, 1985, p. 17).

Adorno e Horkheimer apresentam então uma reflexão sobre essa contradição.

Como o progresso da ciência moderna, da medicina e da indústria pode prometer libertar as pessoas da ignorância, das doenças e do trabalho brutal e alienante e, ainda assim, ajudar a criar um mundo onde as pessoas engolem voluntariamente a ideologia fascista, praticam deliberadamente múltiplos genocídios e produzem incansavelmente armas letais de destruição em massa?

A razão, os autores respondem, tornou-se irracional.

Um ano após a morte de Adorno, em 1970, uma série de ensaios sobre arte, escritos por ele entre 1961 e 1969 foram publicados sob o título de Teoria Estética. O texto reconstrói o movimento da arte moderna a partir da perspectiva da reflexão estética, realizando uma dupla reconstrução dialética que tenta extrair o significado sócio-histórico da arte e da filosofia discutidas. O livro começa e termina com reflexões sobre o caráter social da arte.

Para isso, Adorno retém de Kant a noção de que a arte é caracterizada por sua “autonomia” formal, combinando a ênfase kantiana na forma, com a ênfase hegeliana na importância intelectual e com a ênfase marxista na imersão da arte na sociedade como um todo.

O resultado é um relato complexo da simultaneidade entre o caráter necessário e ilusório da “autonomia” da obra de arte, que, por sua vez, é a chave para o caráter social da arte, ou para que esta seja “a antítese social da sociedade” (ADORNO, 1970, p. 19).

Adorno considera as obras de arte autênticas como “mônadas sem janelas” (ADORNO, 1970, p. 16) cujas tensões expressam conflitos inevitáveis dentro do processo sócio-histórico do qual surgem e ao qual pertencem.

Essas tensões integram a obra de arte por meio da luta do artista com materiais historicamente carregados e evocam interpretações conflitantes que, muitas vezes, acabam confundindo as tensões internas da obra com sua conexão com os conflitos sociais.

Mas a obra de arte não é apenas contraditória em relação a sua “autonomia”. Segundo o também filósofo Walter Benjamin, ela tem um aspecto dialético que desempenha um papel político vital: a desmistificação mútua entre a realidade material e a expressão estética.

Por um lado, a arte requer elementos da história material para sua interpretação, para que os “tesouros” culturais deixem de ser apetrechos da classe dominante. Por outro lado, fornece uma iconografia crítica para decifrar essa mesma história material, de maneira que seus elementos possam ainda constituir uma “constelação revolucionária com o presente” (BUCK-MORSS, 2005, p. 40).

A relação dialética entre realidade material e expressão estética – vulgarmente conhecidas como “vida e arte” – também é recorrente na reflexão sobre arte, pelo menos desde as vanguardas históricas.

Em sua fase inicial, a Internacional Situacionista (I.S.), formada em 1957 por um grupo de intelectuais e artistas, propunha a superação da arte a partir de seu próprio interior, numa simultaneidade de destruição e realização.

No entanto, as contradições logo se mostraram irreconciliáveis. As desavenças entre os artistas dentro da I.S. tornaram-se cada vez mais evidentes e o grupo em torno de Guy Debord – seu líder mais ilustre – concentrava todos os seus esforços na produção teórica e no comprometimento organizacional.

As divergências entre os integrantes da I.S. aumentaram de tal forma que levaram à exclusão forçada ou à saída voluntária de todos os artistas. A partir de 1962, uma versão reorganizada e recomposta do grupo manifestava seu interesse na arte, apenas com relação aos limites de sua superação na forma de uma revolução social.

Num contexto em que a aceleração do tempo de giro do consumo e a superação das barreiras espaciais fizeram com que a sociedade do espetáculo descrita por Debord se disseminasse por todo o “mundo civilizado”, as imagens e sistemas de signos – sejam eles conformistas ou “subversivos” -– se tornaram a “mercadoria” ideal para a acumulação do capital.

A arte – assassinada e “superada” diversas vezes desde o romantismo – parece um zumbi delirante. Ela vagueia em meio à montanha de imagens-mercadorias produzidas pela indústria cultural, tentando ocupar a posição crítica que possuía até meados do século XX. Assume a interferência do mundo a que se refere, procurando afirmar-se como um campo confuso de intersecção entre diferentes planos contraditórios de discurso – sejam eles estéticos, éticos, teóricos, históricos ou políticos.

Mais contradições aparecem com relação à posição que o artista ocupa na sociedade contemporânea. Já em 1970, a crítica de arte norte-americana Lucy Lippard (1937) chama a atenção para a frustração do artista ao correr “de cima para baixo entre a torre de marfim e as ruas”, num movimento esquizofrênico entre as instituições e a realidade material (LIPPARD, 1986, p. 189).

Até meados do século passado, o artista, mesmo quando imerso nas jogadas de poder, tinha duas alternativas: ou fazer um jogo a partir das exigências de seus poderosos patronos – tornando-se um “pintor da corte” – ou adotar uma posição marginal e vanguardista.

Hoje, toda “novidade” artística já surge obsoleta, como resultado de uma corrida frenética e infrutífera contra um mercado inelutável que transforma tudo em mercadoria.

Mesmo as atitudes, experiências e ações artísticas ditas “marginais” são rapidamente anuladas por meio da corporificação e mercantilização da obra e do artista, ou esvaziadas por meio da sua espetacularização. Pelo simples fato de existirem, tornam-se tão mercadoria quanto uma pintura ou escultura tradicional.

O “artista marginal” acabou por desaparecer como uma figura específica, uma vez que a atitude perceptual que ele anteriormente incorporava agora impregna a consciência histórica.

Mesmo que o artista ainda tente buscar a “marginalidade” perdida, ele precisa estar ciente das articulações da arte com as instituições do poder, sejam elas o Estado – que estabelece o que é digno de se tornar cultura nacional –, a mídia – que decide o que é verdade, o que é pós-verdade e o que não é nenhuma das duas –, ou o poder econômico privado ou corporativo representado pelos colecionadores, investidores e instituições – que decidem quem integra as grandes coleções, exposições, festivais etc

Essas articulações são inevitáveis, já que a arte, pelo menos desde a Idade Média, mantém relações cordiais com o poder – incorporado primeiro pela igreja, depois pela aristocracia, pela burguesia e, mais recentemente, pelas corporações.

Por causa disso tudo – da mesma forma que políticos e cientistas – os artistas são responsáveis tanto por suas obras quanto por suas implicações públicas.

Por outro lado, toda ação artística envolve também uma zona de irresponsabilidade, já que não deixa de ser um “ato de risco”.

Assim como o ato político radical, a prática artística é “uma intervenção específica num contexto sócio-simbólico” que, apesar de sempre estar situada num contexto concreto, não é inteiramente determinada por ele.

Este “ato” sempre envolve um risco radical, já que “é um passo no desconhecido”. Ele não tem nenhuma “garantia quanto ao resultado final” porque pode alterar “retroativamente as próprias coordenadas em que interfere” (ZIZEK, 2003, p. 75).

Para que a comparação entre o ato político radical e a ação artística não seja muito superficial ou ingênua, proponho pensar a relação entre eles em duas chaves.

A primeira seria na chave daquilo que o filósofo esloveno Slavoj Zizek descreve como paralaxe:

“A paralaxe não é simétrica, composta de dois pontos de vista incompatíveis do mesmo X: há uma assimetria irredutível entre os dois pontos de vista, uma torção mínima. Não temos dois pontos de vista, temos um ponto de vista e o que foge a ele, e o outro ponto de vista preenche o vazio do que não podemos ver do primeiro ponto de vista” (ZIZEK, 2008, p. 47).

Arte e política seriam, portanto, irredutíveis entre si, relacionando-se apenas por meio de um desvio em que uma preencheria a lacuna deixada pela outra.

A segunda chave para se associar arte e política sem incorrer em chavões superficiais, seria eliminar de vez a relação entre elas e desvelar aquilo que outro filósofo contemporâneo, o italiano Giorgio Agamben, chama de “contato” (AGAMBEN, 2017, p. 304).

Segundo ele, o espaço da política é delimitado por pares de elementos – o poder e a vida nua, a casa e a cidade, a violência e a ordem instituída, a anomia e a lei, a multidão e o povo. Esses pares de elementos se constituem reciprocamente por meio de sua relação de oposição.

Entretanto, essa mesma relação que os une os pressupõe, ao mesmo tempo, como não relacionados. A relação tem assim um papel ontológico essencial pois nela se expressa a própria estrutura que pressupõe a linguagem, uma relação primordial entre o ser e seu dito ou nomeado.

Agamben conclui que o acesso a uma figura diferente da política – que é um problema da maior urgência para o mundo contemporâneo – teria que ter a forma daquilo que ele chama de uma “potência destituinte” (AGAMBEN, 2017, pp. 295-310), isto é, daquilo que coloca em questão o próprio estatuto da relação, que confronta-se com o ser frágil que é a linguagem, tão difícil de conhecer e captar.

Uma “potência destituinte” seria aquilo que, abandonando as relações ontológico-políticas, possibilitasse o aparecimento de um “contato” definido unicamente por uma ausência de representação.

Segundo Agamben, onde uma relação for destituída e interrompida, seus elementos estarão em contato, não há nada entre eles, apenas o vazio que ocupa o lugar do vínculo que tinha a pretensão de mantê-los juntos – mas ao mesmo tempo separados (AGAMBEN, 2017, p. 304).

Nesta chave, a “relação” entre arte e política seria então eliminada.

Para Agamben, a prática artística se tornou o lugar em que a problemática envolvendo a identificação entre a existência humana e um certo modo de vida é demonstrada.

Se, na antiguidade a atividade do artista era definida exclusivamente por sua obra e ele tinha um caráter “residual” com relação a ela, na modernidade é a obra que constitui um resíduo incômodo da atividade criadora e do gênio do artista (AGAMBEN, 2007, p. 276).

Ao tentar se definir pela própria operação, o artista moderno está, de fato, condenado a permutar a própria vida com a própria operação e vice-versa.

“Se a prática artística é o lugar em que se faz sentir, com maior vigor a urgência e, ao mesmo tempo, a dificuldade da constituição de uma forma-de-vida, isso se deve ao fato de que nela se conservou a experiência de uma relação com algo que excede a obra e a operação e, mesmo assim, continua sendo delas inseparável” (AGAMBEN, 2007, p. 277).

Segundo o filósofo italiano, uma forma-de-vida não é definida por uma práxis ou por uma obra, mas sim por uma potência e por uma inoperosidade, isto é, o modo em que o ser se mantém em contato com uma potência pura, em que vida e forma, privado e público, entram num limiar de indiferença.

Um artista não é, portanto, o sujeito soberano de uma operação criadora ou de uma obra, mas sim um ser anônimo que torna as obras da linguagem inoperosas.

Ele não é o autor da obra (no sentido moderno, essencialmente jurídico do termo) nem o proprietário da operação criativa, que são apenas resíduos subjetivos resultantes da constituição da forma-de-vida.

Para Agamben, esta não pode se reconhecer ou ser reconhecida porque é antes de tudo a articulação de uma “zona de irresponsabilidade”, em que as identidades e as imputações do direito estão suspensas (AGAMBEN, 2017, pp. 277-278).

Mas como pode haver lugar dentro das escolas – dos museus e das instituições – para essa articulação de “zonas de irresponsabilidade”? Como uma instituição de ensino pode estimular um aluno a tomar posições irresponsáveis e ao mesmo tempo exigir que ele respeite as regras? Como oferecer um território para a investigação das fendas e dobras no sistema, estimulando iniciativas de risco que explicitem as contradições do fazer artístico sem provocar a ira de setores conservadores da sociedade?

A partir dessas colocações fica claro que a formação do artista também  é contraditória. Em que momento o artista “está formado”? Será que ele não é justamente o desforme, o informe ou o deformado da sociedade?

Para discutir o conceito de “formação” em arte no contexto brasileiro, acho importante citar o escritor Antonio Candido e seu livro Formação da Literatura Brasileira, de 1959. Candido define a literatura – a arte – como

“uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal da linguagem, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela, se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração” (CANDIDO, 1972, pp. 803-809).

Em seu livro de 1959, refere-se à Formação da literatura como fundação, desenvolvimento e consolidação de um “sistema literário” (não de um escritor ou de um escrito), isto é, da articulação entre autor, obra e público, com continuidade histórica (tradição). Literatura é esse sistema articulado que exclui manifestações isoladas e sem ressonância.

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No caso do Brasil, o “sistema literário” teria se constituído plenamente com o surgimento de Machado de Assis. A partir de então, a Formação teria chegado a seu auge, passando a existir uma Literatura Brasileira.

Os conceitos propostos por Antonio Candido passam a funcionar como termômetro para a crítica literária local, na medida em que contribuem para a avaliação das obras e ajudam a apontar quais seriam os autores que passariam a fazer parte desse “sistema”.

Para Candido, esses autores são aqueles que pensam a sociedade a partir da literatura. A análise apresentada em seu livro foi extremamente importante pela criação tanto de paradigmas para a crítica literária local, quanto de sistemas antagonistas a eles.

O poeta Haroldo de Campos, por exemplo, discordava das afirmações de Candido, considerando-as apenas um “construto teórico baseado numa lógica de exclusão e inclusão de textos”. Segundo ele, o ponto de vista apresentado em Formação da Literatura Brasileira é problemático por basear-se numa “concepção metafísica da história, marcada por uma linearidade evolucionista” (POLÊMICA, 2019).

No contexto atual, em que o fluxo transnacional do capital, a contaminação cultural, as redes sociais e os sistemas complexos – originados de padrões simples1 –determinam novas relações de tempo-espaço, qualquer construção vertical e historicista torna-se arbitrária ou mesmo alienada.

Qual seria então a opção para uma formação que não fosse marcada por uma linearidade evolucionista?

Segundo outro filósofo contemporâneo, Alain Badiou, a educação é uma mediadora entre filosofia e arte. A arte produz verdades – assim como a política, a ciência e o amor – que são desveladas pela filosofia com intermediação da educação.

Em Pequeno Manual da Inestética, Badiou discorre sobre esse entrelaçamento entre arte, filosofia e educação por meio de três esquemas – didatismo, romantismo e classicismo.

“No didatismo, a filosofia entrelaça-se com a arte na modalidade de uma vigilância educativa de seu destino extrínseco ao verdadeiro. No romantismo, a arte realiza na finitude toda a educação subjetiva da qual a infinidade filosófica da ideia é capaz. No classicismo, a arte capta o desejo e educa sua transferência pela proposta de uma aparência de seu objeto. Aqui, a filosofia só é convocada enquanto estética – dá sua opinião sobre as regras do “agradar” (BADIOU, 2002, pp.15-16).

Para o filósofo, os três esquemas foram saturados durante o século XX e acabaram produzindo uma espécie de “desenlaçamento dos termos, um desrelacionamento desesperado entre a arte e a filosofia”, bem como o desaparecimento puro e simples do que circulava entre elas: a educação (BADIOU, 2002, p. 18).

A arte – assim como a política, a ciência e o amor –

“educa simplesmente porque produz verdades e porque “educação” jamais quis dizer nada além do seguinte – a não ser nas montagens opressivas ou pervertidas: dispor os conhecimentos de tal maneira que alguma verdade possa se estabelecer…” (BADIOU, 2002, p. 21).

E na prática? Qual é a verdade estabelecida por meio dos conhecimentos dispostos nas escolas de arte?

Nelas, os estudantes estudam as estratégias de inserção no mercado, os procedimentos “revolucionários”, as técnicas tradicionais e as determinações históricas, aprendendo a ser “jovens artistas”.

O termo “jovem artista” – de uso frequente em editais, programas de residência e textos de apresentação de exposições ou projetos curatoriais – significa muito mais do que um período na vida de alguém que faz arte.

Não é simplesmente a mesma coisa que o “artista quando jovem” de James Joyce.

Este último é descrito no primeiro romance do escritor irlandês, Retrato do Artista Quando Jovem de 1916, em que ele narra a “formação” de seu alter ego Stephen Dedalus. Conforme o personagem amadurece, Joyce muda o estilo do texto, construindo um espelhamento entre conteúdo e forma.

O livro é considerado um romance de “formação”, ou seja, um romance em que se expõe o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de um personagem, que nesse caso se confunde com o do próprio autor.

Enquanto o termo “o artista quando jovem” é uma denominação retroativa que pressupõe a existência de uma obra feita por alguém que faz arte (o artista), a nomenclatura “jovem artista” prescinde da obra. Ela estabelece uma categoria que existe antes da arte, uma aposta que pode dar certo (valorizar) ou não.

As escolas de arte lançam “jovens artistas” na mesma frequência que as grandes lojas lançam suas novas coleções.

Surgem então os “jovens-artistas-mercadoria” que abastecem a demanda capitalista pelo “novo-sempre-igual”2. A verdade que se estabelece nas escolas de arte é, portanto, a prevalência total do fenômeno que Marx chamou de fetichismo da mercadoria:

“Todos os objetos e todos os atos são iguais enquanto mercadorias. Eles não são nada além de quantidades maiores ou menores de trabalho acumulado e, portanto, de dinheiro. É o mercado que realiza essa homologação, para além das intenções subjetivas dos autores. O reinado da mercadoria é terrivelmente monótono e até mesmo sem conteúdo. Uma forma vazia e abstrata, sempre a mesma, uma pura quantidade sem qualidade – o dinheiro – se impõe pouco a pouco à multiplicidade infinita e concreta do mundo” (JAPPE, 2012).

A relação entre arte e educação desvela, portanto, uma gama de contradições não resolvidas. Isto acontece porque ambas estão em “contato” com a política, a ciência e o amor, trazendo à tona a memória de uma série de interrupções ambíguas, o déjà-vu de uma revolução esquecida, apagada, que nunca terminou de se realizar porque se emaranha e se confunde com as estruturas sociais do capitalismo (MEDINA, 2010).

Como dispor conhecimentos de maneira que a “verdade” da arte se estabeleça?

Talvez possamos começar tentando criar condições para o aparecimento de zonas de irresponsabilidade.

Zonas em que as divisões hierárquicas do perceptível sejam refutadas, a política seja substituída por uma configuração do mundo sensível e a esperança da emancipação mantenha-se no horizonte (RANCIÈRE, 2005).

Essas zonas de irresponsabilidade podem vir a instaurar fendas e dobras no sistema que só vão poder ser identificadas retroativamente e que, nesse movimento, vão alterar as próprias coordenadas em que surgiram.

Podem fazer emergir promessas de realização de um novo mundo, fundamentadas na negatividade que se espalha na violência contraditória da contemporaneidade (BENOIT, 2004) e que por isso são impossíveis de serem satisfeitas no presente.

Algumas dessas promessas poderão ser chamadas de arte. Ou de política. Ou ainda de educação.

 

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Tradução: Artur Mourão. Lisboa: Edições 70 Ltda, 1970.

–––––– ; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução: Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

AGAMBEM, Giorgio. O uso dos corpos [Homo Sacer, IV, 2]. Tradução: Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2017.

BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. Tradução: Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

BENJAMIN, Walter. “Central Park”. Tradução para o inglês: Lloyd Spencer. In: New German Critique 34, Winter 1985.

BENOIT, Alcides Hector R. “As raízes (gregas) do Brasil”. In: Contravento. Volume 2, Novembro, 2004.

BUCK-MORSS, Susan. Walter Benjamin: escritor revolucionário. Tradução para o espanhol: Mariano López Seoane. Buenos Aires: Interzona Editora S.A., 2005.

CANDIDO, Antonio. “A literatura e a formação do homem”, em Ciência e Cultura, São Paulo, v. 24, pp. 803-809, 1972.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas em Epítome. Vol. I. Tradução: Artur Mourão. Lisboa: Edições 70 Ltda., 1969.

JAPPE, Anselm. “Fin de la révolution et fin de la fin de l’art?” In: Desformas: Sessão Especial / A formação e a Espada, São Paulo. Trabalho não publicado, 2012.

JOHNSON, Steven. Emergência: a vida integrada de formigas, cidades e softwares. Tradução: Maria Carmelita Pádua Dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

JOYCE, James. Retrato do artista quando jovem. Tradução: José Geraldo Vieira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

MARX, Karl. O Capital: Livro 1. Posfácio à 2ª edição alemã (1863). Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/ocapital-v1/prefacioseposfacios.htm. Acesso em: 11 de Jul. 2019

MEDINA, Cuauhtémoc. “Contemp(t)orary: eleven theses”. In: E-flux journal, no 12, janeiro 2010. Disponível em: http://worker01.e-flux.com/pdf/article_8888103.pdf. Acesso em: 11 de Jul. 2019.

POLÊMICA Antonio Candido x Haroldo de Campos. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo6163/polemica-antonio-candido-x-haroldo-de-campos. Acesso em: 11 de Jul. 2019. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Tradução: Mônica Costa Netto. São Paulo: Exo/Editora 34, 2005.

ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. Tradução: Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.

––––––. Bem-vindo ao deserto do real! Tradução: Paulo Cesar Castanheira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

O novo homem Luis Camntizer no 3º Seminário seLecT

O novo homem

Em texto para o 3º Seminário de Arte e Educação, Luis Camnitzer recontextualiza comentários de Che Guevara sobre relações entre arte e sociedade

Luis Camnitzer

Por bem ou por mal, Che Guevara influenciou fortemente minha geração. Nunca usei uma camiseta com a imagem dele, mas prestei atenção em alguns de seus artigos e fiquei particularmente interessado quando ele falou sobre arte. Isso não acontecia com frequência, mas em “Socialismo e o Novo Homem” (sic), escrito em 1965, ele deu suas opiniões sobre o papel dos artistas na sociedade capitalista. É uma visão que em parte parece ser verdadeira mais de meio século depois, mas também com ideias que parecem românticas ou inaplicáveis, embora ainda sejam usadas hoje.

Che observou, por exemplo, que a arte e a cultura no sistema capitalista existem como uma defesa contra a “morte diária durante oito horas ou mais em que [o homem] trabalha como mercadoria, para depois ressuscitar em sua criação espiritual”, e também que a arte é uma defesa da individualidade em que as ideias estéticas contribuem para a sensação de ser único e imaculado. Tudo isso, segundo ele, é uma forma de escapar da qualidade insuportável do ambiente. R.D. Laing expressou pensamentos semelhantes alguns anos depois, quando escreveu: “Palavras em um poema, sons em movimento, ritmo no espaço, tentativa de recapturar o significado pessoal no tempo e no espaço pessoais a partir das imagens e sons de um mundo despersonalizado e desumanizado. São cabeças de ponte em território estrangeiro. São atos de insurreição.” Embora a arte e a cultura possam servir para isso, seria um exagero limitá-las a essa função.

Mais curiosamente ainda, falando sobre o artista profissional, ele escreve:

“A superestrutura força uma arte na qual os artistas devem ser educados. O maquinário subjuga os rebeldes, e apenas talentos excepcionais podem criar um trabalho próprio. O resto se torna mercenário ou é esmagado.” “A pesquisa artística é inventada para definir a liberdade, mas essa pesquisa tem limites perceptíveis apenas quando nos chocamos com eles, ou seja, quando são levantados os problemas reais do homem e sua alienação. Angústia sem sentido e passatempo trivial tornam-se válvulas de escape para o mal-estar humano: a possibilidade de uma arte de denúncia está descartada.” “Aqueles que seguem as regras recebem as homenagens; assim como poderia receber um macaco inventando piruetas. A condição é não tentar escapar da jaula invisível.”

O conceito de jaula foi posteriormente reformulado de forma incisiva por Stephen Wright em 2013, quando ele comentou: “É claro que a arte autônoma afirma regularmente que morde a mão que a alimenta; mas nunca com muita força”.

A arte não estava no topo da lista de solução de problemas de Che, e o texto do “Novo Homem” talvez contenha suas menções mais explícitas. O interesse em citá-lo aqui é porque a relação entre arte e sociedade não mudou muito no último meio século, e é revelador ouvir alguém imerso em combate político que não tem opiniões ignorantes nem dogmáticas sobre as coisas. Dependendo do ponto de vista da pessoa, a descrição de Che do artista e como os artistas se encaixam na sociedade pode ser essencialmente considerada correta, embora sua crítica ao Realismo Social e à “arte pela arte” tenha perdido relevância. Para ele, o Realismo Social é uma forma de evitar a pesquisa artística ao combinar um presente socialista com um passado estético. Ele prosseguiu, alegando que “não se pode opor realismo social a ‘liberdade’, porque isso ainda não existe e não existirá até que haja uma nova sociedade. […] Falta o desenvolvimento de um mecanismo ideológico-cultural que permita a pesquisa [artística] […].”

É aqui que Che (assim como as pessoas que pensam parecido) parece mais limitado. A arte bem empregada passa a ser o mecanismo ideológico-cultural exato necessário para uma nova sociedade livre. Ele não considerou essa possibilidade porque estava navegando pelas limitações de uma arte política baseada no conteúdo narrativo, em vez de se basear na ação. Embora estivesse tentando abrir perspectivas, ele acreditava na separação disciplinar de tarefas. Nesse sentido, o pensamento político teria papel de vanguarda e atuaria separadamente de tudo o mais. A arte estava lá para oferecer experiências e visualizar os esforços. A arte só poderia funcionar livremente enquanto os desdobramentos políticos criassem o ambiente adequado para ela. No mesmo texto, Che se queixa: “Não há artistas de grande autoridade que também tenham grande autoridade revolucionária”. Embora fosse verdade, o problema era que tampouco havia políticos com grande autoridade que também tivessem grande autoridade artística.

Che não considerou a possibilidade de que a arte pudesse ser usada para construir a liberdade que ele considerava ausente. Ou que qualquer revolução que pudesse ocorrer sem arte revolucionária e política revolucionária seria apenas parcial e, portanto, malsucedida. A política e a arte precisam trabalhar de mãos dadas a ponto de serem a mesma coisa, não apenas se ilustrarem. Na verdade, é aí que a arte se torna o componente educacional que pode redirecionar a estratégia política para ser pedagogicamente eficaz e ajudar no surgimento do “novo homem”.

Curiosamente, na mesma época que Che escrevia seu texto e mencionava a “pesquisa artística”, havia um desejo incipiente de promover a mudança para se entender a arte não como um meio de produção, mas como uma forma de processamento do conhecimento. A arte conceitual hegemônica se afastou da arte materializada e introduziu a solução de problemas, com a arte conceitualista na periferia, adicionando resistência política à mistura. O problema é que, a partir daí, os dilemas da autonomia mudaram sem serem totalmente resolvidos. Hoje trata-se de onde essa autonomia deve ser colocada, se é nos domínios do “capital cognitivo” ou da educação, com a alfabetização e a enumeração, e também quem deve ser servido por ela.

Na época de Che, seguindo sua tradição de ser artesanal, a arte era uma habilidade autônoma ou a serviço de algo. A questão de “a quem servia” era separada e reservada à análise ideológica. Hoje, a autonomia só pode ser discutida seriamente se for feita considerando todas as implicações e de uma maneira extremamente matizada. Temos que tentar entender como a mesma palavra acomoda instrumentos financeiros, frases de efeito visual espetacular, pesquisa séria na solução alternativa de problemas, construção de significados, serviço de classe e arte como prática social.

O conceito de arte de Che era mais simples e característico para pessoas fora dos círculos artísticos. Uma visão esquemática ainda estava imersa na dicotomia abstração/figuração prevalente na América Latina nos anos 1950, quando a abstração representava tanto a autonomia quanto a utopia modernista. A política deveria ser representada no conteúdo narrativo da obra de arte, algo muito mais fácil de se fazer com a figuração. Colocado desta forma, pode-se pensar que todas essas opções são ou/ou, em que uma escolha exclui todas as outras e aquelas descartadas são jogadas em uma lixeira intelectual.

Hoje pode-se dizer que nenhuma dessas reflexões sobre figuração e mensagens políticas importa muito. Mesmo que essas diferenças permanecessem relevantes, algumas delas poderiam acabar tendo um efeito cultural e muitas, não. Pode-se confiar que, se deixarmos a arte apenas acontecer como um ofício aprimorado ou como uma contribuição ao conhecimento e sem interferência racional ou orientação, ela encontrará sua própria maneira de afetar a sociedade e se instalar na cultura coletiva. Historiadores e antropólogos em um futuro distante avaliarão, então, o que realmente aconteceu. Parece, entretanto, que nesse ínterim nós trabalhamos pelo presente, e ainda é nossa responsabilidade fazer o melhor possível, uma vez que somos responsáveis por aqueles que vivem ao nosso redor.

A referência de Che à arte começa afirmando: “É na área das ideias que levam a atividades improdutivas que fica mais fácil ver a divisão entre as necessidades materiais e espirituais”. Segue-se a noção ainda predominante hoje de que arte é uma atividade de lazer. Não importa que aspecto conformando a palavra “arte” possamos escolher, ao vê-la como um meio de produção de objetos tangíveis inúteis, os resultados de alguma forma sempre recaem na área da apreciação. Devemos olhar para a arte, entendê-la e, possivelmente, apreciá-la, mesmo que não gostemos. Consequentemente, a educação artística é claramente dividida em cursos que ensinam como fazê-la e os que ensinam a apreciá-la. O bom “fazer” pode, por fim, levar a escolas de arte especializadas, com bom apreço por todas as diferentes indústrias que giram a seu redor e apoiando os produtos da arte. Em outras palavras, o foco está nas diferentes formas de como a arte apresenta sua instrumentalização, mesmo que, comparada a outras indústrias, seu nível de aplicabilidade seja baixo.

Esse foi o problema que Che enfrentou quando viu a arte como uma ferramenta para o resgate espiritual da exploração capitalista e como algo carente de liberdade em uma sociedade que começava a tornar possível a liberdade de seus cidadãos. Ele não pensou na possibilidade de ter a arte como forma de cognição ajudando nessa tarefa. Ele tampouco descreveu o que a arte poderia fazer ou parecer uma vez que a liberdade fosse alcançada. O primeiro descuido foi uma pena e o segundo, sorte. Dentro de seu conceito de arte, qualquer definição teria negado a liberdade que ele esperava.

Em vista do fracasso das revoluções políticas do século XX, a questão da função social da arte é de crescente interesse e importância. Assim como o foco em para que ela é utilizada, que é um conceito tido como certo em todos os sistemas sociais ocidentais. Deve haver um propósito prático em tudo o que fazemos, caso contrário, é luxo ou lazer. Isso condicionou o sistema educacional, fazendo-o mudar cada vez mais para a praticidade, eliminando as humanidades e as artes dos currículos e tendo que lidar com a questão de como essa coisa inútil que chamamos de arte pode ser quantificada e utilizada de forma prática. Nas sociedades capitalistas, nos últimos anos, essa inutilidade evoluiu e adquiriu valor de investimento. Os cursos de administração e consultoria artísticas estão proliferando. Na medida em que a arte é mantida nos currículos – e a maioria dos artistas hoje tem formação universitária –, os cursos de negócios e as habilidades de sobrevivência estão se tornando uma parte fundamental da formação do artista.

As galerias costumavam seguir o modelo antiquado de mercearia. Costumava-se ir à loja e comprar o que se gostasse ou precisasse. Depois de um período no formato supermercado, aperfeiçoou-se com a apresentação no estilo de feira de arte. O poder da galeria está cada vez mais concentrado nas mãos das megagalerias transnacionais, que funcionam como corretoras para mais de cem artistas cada uma. Negócios sérios de arte tornaram-se transações realizadas em papel, com certificados de autenticidade e propriedade trocados enquanto a própria arte permanece armazenada em depósitos à prova de intempéries climáticas. Enquanto isso, a pesquisa artística avança para o nível de doutorado, tornando o grau terminal mais caro, inatingível e elitista.

A inutilidade do consumo contemplativo torna-se útil por meio da economia do lazer construída em torno dele. Na arte, a “experiência” tornou-se a mercadoria que gera renda para quem tem condições de ter lazer. O processo, entretanto, não se limita ao lazer, passando a fazer parte da maioria das transações comerciais. Foi teorizado no que é chamado de “a economia da experiência”. As pessoas não trocam mais de marcas e lojas por falta de qualidade, mas pela experiência ruim ou despersonalizada proporcionada durante o processo de compra. Os clientes estão dispostos a pagar mais por um serviço eficiente e agradável em detrimento da qualidade dos produtos reais. Portanto, não é mais a obra, mas a experiência da obra que deve ser memorável. A memorabilidade da experiência é reforçada pelo espetáculo oferecido para contextualização. As pessoas então não olham para a obra, mas tiram selfies para registrar que a experiência aconteceu.

Essa situação gerou algumas resistências que se concretizaram na “arte como prática social” (incluindo a ação política) e algumas formas de pesquisa artística. Che teria apreciado ambos os aspectos, embora não correspondessem exatamente às suas expectativas. A prática social apresenta uma tendência populista e trabalha para melhorar criativamente as condições de vida na sociedade. A pesquisa artística é voltada para introduzir metodologia e teoria rigorosas no fazer artístico, atendendo principalmente ao campo da arte. O que é interessante, no entanto, é que, embora não tenham um impacto radical, esses movimentos levaram a mostrar o verdadeiro papel cultural da arte. Arte não tem a ver com objetos tangíveis, mas com uma metodologia de abordagem do conhecimento, às vezes usando objetos para esse fim, e com “criar significados”.

A “criação de significados”, entretanto, tem duas interpretações. Uma é usada na pedagogia construtivista entendida como “dar sentido” às coisas, ao colocar ordem na desordem ou ordem mal compreendida. A outra interpretação, mais ambiciosa, vai além e quer usar a arte para gerar “novos” significados. É esta que Che havia perdido. Poderia tê-lo ajudado na construção de sua utopia, o que levanta outro problema. Se criar novos significados fosse útil para construir utopias, seria contraproducente, uma vez que uma utopia não tem espaço para novos significados.

Esse foi um erro típico de muitos na geração de Che e na minha (ele era apenas nove anos mais velho que eu). Eu tive minhas próprias visões da utopia e sabia como a sociedade deveria ser. Isso me levou a me interessar por outro pensamento utópico. Aceitei alguns e rejeitei outros de acordo com a forma como combinavam com minhas crenças. Todos concordamos que o Mundo não estava funcionando e que fomos designados para melhorar a situação. O fato de estarmos onde estamos e de todas as pessoas no poder que poderiam ter ajudado a melhorar a situação serem mais jovens que eu mostra o grau de nosso fracasso. No entanto, a Utopia ajudou-me a “fazer sentido”, e usei-a na interpretação pedagógica do termo. Fazer sentido foi uma forma de pensamento crítico que ajudou a recontextualizar e rearticular meu entorno, bem como escolher as ferramentas mais adequadas para isso. Foi a sensação de que compartilhar essa utopia era socialmente útil que me fez enfocar na educação. Ao mesmo tempo envolvido em estudos de arte, trabalhei com o que aprendi lá, mas o fiz dentro das visões convencionais sobre as divisões disciplinares.

A arte nos anos 1950 era considerada um sistema de produção independente, um conjunto de ofícios com algo extra que não podia ser claramente definido. Esse extra permitia aos artistas desabafar, expressar e às vezes chocar. O desabafar tinha valor terapêutico, expressar-se ajudava na comunicação, e chocar podia ser usado para se tornar famoso ou para aumentar a conscientização. Todos os três aspectos poderiam ser calibrados para levar a sociedade a me aceitar como um grande artista ou a construir minha utopia. O fato de que qualquer uma das possibilidades seria um sinal de arrogância narcisista nem me ocorreu. O mesmo afetou meu trabalho como professor. Embora acreditasse na sala de aula horizontal, referia-me à educação como ensino, o que minava seriamente minhas teorias cuidadosamente elaboradas.

Com o passar dos anos, corrigi muitas dessas falhas. O “fazer arte” tornou-se “pensar arte” e solução criativa de problemas. “Ensinar” tornou-se trabalho em equipe e “aprender juntos”. A separação entre arte e educação tornou-se cada vez mais nebulosa, a tal ponto que hoje não vejo uma razão clara para separá-los em duas disciplinas distintas. Um ponto, porém, permaneceu problemático. Um de meus filhos me desafiou a explicar o que estava por trás das palavras “combinava com minhas ideias”.

Era algo muito simples: “combinar com minhas ideias” favorece um sistema estático construído no passado e força o futuro a se encaixar nele. A resistência à minha (ou qualquer) utopia nessas condições é compreensível. Isso não significa que minhas ideias estejam erradas. Nem significa que estou negando o direito de construir um sistema mais novo que reflita as ideias da próxima geração. Mas, no cerne disso, está a vaga questão de qual é o papel do passado em relação ao futuro. Vaga o suficiente para parecer trivial, essa questão determina nossa relação com o tempo e nossa posição em relação à ignorância. Influencia, portanto, as ideologias com as quais atuamos tanto na área pedagógica quanto na artística, e também a quem nos dirigimos.

O passado é usado como base de sustentação. Depois de identificar o que pode estar certo nessa plataforma, identificamos o que está errado, moldamos nossos valores apropriadamente e os usamos para tentar melhorar o futuro. Isso parece óbvio e “faz sentido”. No entanto, só faz sentido dentro do que sabemos. A exploração de novos parâmetros e a construção de novos significados estão impedidas. O que sabemos pertence ao passado e nossos erros não devem se tornar um legado, mas o que não sabemos pertence ao futuro, e a resposta é flexibilidade, não utopia.

Mesmo quando tenta ser progressista e utópico, o sistema educacional fica amarrado por parâmetros conhecidos. O objetivo é desenvolver competência, e a avaliação de competência não dá espaço para surpresas. Eu acredito que arte e educação são basicamente a mesma coisa, que uma pedagogia que não é criativa é uma pedagogia ruim, e uma arte que não é pedagógica é uma arte ruim, mas há uma ligeira diferença: na arte as surpresas não são apenas permitidas, mas também esperadas.

Mesmo o sistema de educação mais progressista usa palavras consagradas como portadoras de negatividade, sem contestar seu valor. “Impossibilidade” é uma, mas há muitas outras, como “ignorância”, “impraticável”, “desperdício”, “falha”, “ilógico”, etc., todas as quais são desprezadas porque não levam a maiores experiências. No entanto, embora possam não ser convenientes para a experiência vendável, são úteis para o oposto, algo que gosto de chamar de inperiência.

A palavra “experiência” vem do grego ex = fora e perior = intenção. Apesar da qualidade pessoal e subjetiva que atribuímos a ela, a experiência é como nozes para um esquilo: alcançar algo externo que então é trazido para nossas bochechas para ser consumido. Na linguagem convencional, o oposto presumido da experiência é a inexperiência, outra negativa, uma vez que se refere apenas à ausência. Se quisermos considerar a experiência como ela é, sem um valor pré-carregado, a alternativa real seria inperiência, palavra que surpreendentemente quase não existe. Em espanhol aparece como “inperiencia”, com a autoria reivindicada por Jorge Veas em 2007. Veas é um terapeuta e obstetra chileno e, em sua interpretação, a inperiência se aplica ao modo como nos relacionamos com processos internos perceptíveis e controláveis por meio da introspecção. A experiência trata de como nos relacionamos com objetos externos.

Acho inperiência mais útil quando interpretada como uma forma de enfocar as situações internas e externas. Trata-se de um processo de “insight” que não separa o interior do exterior e leva em consideração o que uma experiência pode produzir, o que é projetado na experiência e o que é projetado nos outros. Isso torna a experiência principalmente uma ação, e não um consumo. Baseia-se na responsabilidade de agir e fazer, e não em limitar-se a si mesmo na exploração dos pensamentos e sentimentos após a ingestão, assim como a capacidade e a necessidade de receber.

Em relação ao texto de Che, a liberdade, então, não é algo a ser entregue por um político para então ser experimentado. É algo a ser tomado ou criado, mas sempre influenciado, revelado e compartilhado. Como tal, constitui o fundamento da verdadeira militância, baseada em percepções compartilhadas em vez de doutrinação.

inperiencia ativa tornou-se particularmente importante hoje. Estou escrevendo este texto no meio de uma quarentena que já dura mais de quatro meses. Embora distante da vida real na prisão, a comparação é inevitável. Muito de nossa sanidade provém da introspecção e inperiência da maneira como Veas a descreveu. O confinamento das “quatro paredes” imposto pela pandemia realmente aumenta o perigo de limitar nossa inperiência à definição dele. A incidência e vivacidade do sonho multiplicou-se sensivelmente nestes poucos meses, gerando uma experiência que lembra a “Segunda Vida” e que já gerou estudos e artigos que a explicam como efeito de isolamento e falta de estímulos.

Na ausência de um público perceptível, também pode haver a tentação de voltar às formas românticas de arte que se concentram em expressões pessoais e íntimas. O público deixa de ser uma audiência e passa a ser um conceito abstrato e generalizado que pode ser facilmente ignorado por falta de confronto. Quando a sociabilização ocorre, é mediada por telas de computador, as pessoas se transformam em imagens e as performances coletivas são dominadas por saladas visuais compostas por fragmentos individualizados. Peças e shows aparecem nas redes sociais em uma nova estética inspirada no jogo “Exquisite Corpses” dos surrealistas. Música, histórias e danças compostas por unidades executadas em diferentes casas são perfeitamente costuradas para reconstruir o que poderia ter acontecido como uma performance coletiva em um palco. Um exemplo notável recente é o Lago dos Cisnes de Tchaikovsky realizado nas banheiras de membros de diferentes grupos de balé franceses.

É a diferença entre experiência e inperiência com a liberdade proporcionada por esta que explica por que há um valor negativo atribuído a palavras como “impossibilidade”, “impraticável”, “desperdício”, “ilógico”, “fracasso” e “ignorância”. A atribuição de valores predefinidos vem da ideia de experiência. Os acontecimentos têm que ser bem-sucedidos, caso contrário são “experiências ruins”. Porém, do ponto de vista das inperiências, essas palavras nada mais são do que estímulos. Impossibilidade significa que estamos pensando em um nível de imaginação mais elevado e ilimitado. Impraticável, assim como desperdício, livra-nos da aplicabilidade. Ilógico abre perspectivas ao suspender a causalidade. Falha aponta para uma incompatibilidade entre um problema inicial e uma solução que, portanto, precisa de um problema melhor formulado ou diferente. E ignorância refere-se ao campo imenso e fascinante do que não conhecemos. Está eternamente aberto para exploração, para descoberta, para mudar e criar sistemas de ordem e para nomear coisas ainda não nomeadas ou renomear aquelas que já estão. Na verdade, é o uso negativo da ignorância que limita o escopo, efeito final da educação tradicional.

A intenção negativa de todas essas palavras só ocorre quando elas são colocadas na área da aplicabilidade, ou seja, quando negociamos nossa imaginação com a realidade e encontramos os compromissos necessários. O problema é que, ao ignorar a consciência dessa etapa, também minimizamos e acabamos por perder nosso poder de imaginação. É nesse contexto que a negatividade absoluta da ignorância pode ser provavelmente mais perigosa. É a palavra mais imprecisa (podemos medir o que sabemos, mas não o que não sabemos) e é usada para rebaixar e excluir, em vez de para explorar sistemas de ordem. A educação, como normalmente vista e praticada, representa o apagamento da ignorância, não a exploração do que não sabemos ou daquilo a que não podemos ordenar. Contudo, e se a ordem de que precisamos não estiver no que foi organizado para nós, mas em algo que nós mesmos criamos? Em seu romance Borderliners, Peter Hoeg escreve:

“Organizar é reconhecer. Saber que, em um mar sem fim e desconhecido, há uma ilha em que você já pisou. Eram ilhas como essas que ela estava indicando. Com as palavras, ela havia criado para si mesma uma teia de pessoas e objetos familiares. […] Com suas listas, garantiu que tudo o que ela conheceu um dia voltaria.”

Conhecimento refere-se a um passado e à construção de um passado que nos dá uma sensação de segurança ao nos fazer aprender o que já foi nomeado e reafirmar o que é conhecido. Assim, o nomeado é integrado ao nosso conhecimento, e o mais interessante, o não nomeado, permanece encerrado na ignorância. E, então, o que ainda não se sabe só se pesquisa dentro do previsível, ou seja, o que pode ser derivado do que se sabe. É isso que o torna um processo experiencial e não inperiencial, e o que torna “imprevisível” mais uma palavra negativa. O que ainda não experimentamos foi experimentado por outros, de forma que o que se presume ter sido aprendido ocorreu por aquisição ou compartilhamento dessas experiências. Embora a Economia da Experiência só tenha assumido alguma forma teórica durante os últimos anos do século XX, é claro que a experiência, em vez da inperiência, moldou a comunicação e o comportamento por alguns séculos anteriores. Tem ajudado na construção da cultura de consumo individual atual. Na verdade, é a falta de uma metodologia clara para projetar experiências no contexto de uma pandemia o que agora está desconcertando tanto o mercado de arte quanto as instituições educacionais.

Uma vez que as experiências estão enraizadas em estímulos identificáveis, a tentação de aplicar repetibilidade e análise quantitativa é óbvia. Isso está no cerne das estatísticas e da análise de mercado. Foi também o motor de tentativas malsucedidas de quantificar as inperiências que se aplicam à arte. Notadamente entre elas, e buscando grande precisão, esteve George Birkhoff, que em 1933 propôs a fórmula M = O/C (Medida é igual a Ordem sobre Complexidade). De acordo com os cálculos de Birkhoff, a forma mais perfeita é um quadrado com M = 1,50 e lados horizontais. No entanto, ao discutir música, Birkhoff reconheceu que também se deve levar em conta o gosto e o consenso predominantes e incomensuráveis.

Mais recentemente, o físico Haroldo Ribeiro desenvolveu um algoritmo para determinar a relação entre complexidade e entropia em pinturas a fim de identificar mudanças estilísticas na História da Arte. Aplicado a 140 mil pinturas digitalizadas, o algoritmo não tem como objetivo medir a qualidade, mas ajudar na classificação de acordo com critérios formalistas. Em ambos os casos, é a mente científica experimental em busca de previsibilidade que tenta assumir tópicos não quantitativos que exploram os opostos em busca de uma utopia formalista. Felizmente, tanto a obra de Birkhoff quanto a de Ribeiro permanecem como esquisitices fúteis, assim como sistemas sociais mais ambiciosos que pretendem alcançar a imobilidade.

O que podemos ter aprendido com o vírus é que nossa relação com a tangibilidade direta e a experimentação tradicional é muito frágil. O Novo Homem não surgirá de uma confiança na quantificação. Se for o caso, as mudanças ocorrerão a partir de uma educação que reconsidera e equilibra a experiência com a força de nossos insights e inperiências, buscando fazer disto o foco. Poderá, assim, abrir a possibilidade de gerar novos significados e ordens e, portanto, o que poderemos chamar de “Pessoa [constantemente] Nova e Criativa”.

1 R.D. Laing, The Politics of Experience, Ballantine Books, 1971 (1967), p. 43-44.
2 Stephen Wright, Toward a Lexicon of Usership, p. 12, https://museumarteutil.net/wp-content/uploads/2013/12/Toward-a-lexicon-of-usership.pdf, acessado em 14/07/2020
3  Joseph Pine e James Gilmore, “Welcome to the Experience Economy,” Harvard  Business Review, jul.-ago. 1998,  https://hbr.org/1998/07/welcome-to-the-experience-economy, acessado em 12/07/2020
https://medicinayemocion.blogspot.com/2007/03/experiencia-o-inperiencia.html?fbclid=IwAR1ABWuVK2JcVRg9fdWycpExz8O3OVcYr3CJhQBESPNyNYOf3fBsBPldphE acessado em 12/ 07/2020.
5  Peter Hoeg, Borderliners, Farrar, Strauss and Giroux, 2013
6 George Birkhoff, Aesthetic Measure, Harvard University Press, 1933, p. 47 
7  Ibid. p.11
8  Jess Romeo, “Entropy in Art”, Scientific American 04/2019, p. 16

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Luis Camnitzer é artista, curador e professor. Foi curador de artistas emergentes no The Drawing Center, em Nova York; curador pedagógico da 6ª Bienal do Mercosul, curador pedagógico da Fundação Iberê Camargo, e assessor pedagógico da Coleção Patricia Phelps de Cisneros. Vive e trabalha em Nova York, onde atua como professor emérito da Universidade do Estado de Nova York

Educar é mais importante do que colecionar O artista Luis Camnitzer em retrato de 2012 (Foto: Divulgação)

Educar é mais importante do que colecionar

Palestrante do 3º Seminário seLecT de Arte e Educação, Luis Camnitzer fala sobre a urgência de repensar a função dos museus

Nathalia Lavigne

Usar a arte para estabelecer conexões a partir de um fazer coletivo esteve desde sempre entre as principais abordagens do artista, crítico e pedagogo Luis Camnitzer. Sua frase-instalação “O Museu é uma Escola: o artista aprende a se comunicar, o público aprende a estabelecer conexões” resume alguns dos aspectos fundamentais em sua trajetória de mais de cinco décadas. Idealizada em 2009 e exibida desde 2011 em fachadas de mais de 20 instituições, entre elas o Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 2016, a instalação é um dos trabalhos mais conhecidos do artista nascido na Alemanha (1937), criado no Uruguai e radicado em Nova York desde 1964. Foi lá que iniciou sua produção como integrante do coletivo The New York Graphic Workshop (1964-1970), e junto com outros latino-americanos imigrantes como Liliana Porter e Luis Felipe Noé explorou técnicas democráticas de impressão e a combinação entre imagem e palavra.

Desde então, Camnitzer construiu uma obra múltipla e em diversas frentes, mas que muitas vezes levam a uma mesma conclusão: “O que falo é quase sempre igual: que a arte e a educação, quando bem compreendidas, são mais ou menos a mesma coisa”, afirma à seLecT. Nesta entrevista, ele comenta sobre o desmantelamento das estruturas comunitárias, reforçada pelo atual contexto, e do papel da arte como um instrumento utópico de sobrevivência.
O artista é o palestrante inaugural do Seminário seLecT de Arte e Educação, que será transmitido ao vivo na plataforma da seLecT no Youtube: youtube.com/c/selectartbr. Na palestra The New Man, na terça feira 15, às 16h, ele fará uma recontextualização para os dias de hoje das ideias de Che Guevara sobre arte e sociedade.
O seminário é a terceira etapa do Prêmio seLecT de Arte e Educacão, uma iniciativa organizada pela revista seLecT desde 2017, criada para valorizar e incentivar escolas, instituições de arte, espaços de ensino, projetos artísticos colaborativos e iniciativas inovadoras e experimentais que favoreçam os diálogos e os vínculos entre arte e educação. A terceira edição tem co-realização do Itaú Cultural, apoio da galeria Almeida e Dale, parceria da galeria A Gentil Carioca e da Arapuru London Dry Gin.

seLecT: Começo com uma pergunta genérica, mas inevitável nesse contexto: como tem passado nesses últimos meses e que impacto acredita que essa pandemia terá tanto na produção da arte atual quanto em novas formas de percepção artística?
Luis Camnitzer: Entre os trabalhos artísticos que tenho visto, noto muito uma produção realizada coletivamente como um quebra-cabeças, especialmente na música e na dança, criadas com vários participantes em fragmentos individuais, desde suas casas, e depois editadas para formar um todo coerente. É algo muito engenhoso, um pouco como os contos e poemas ao estilo dos “cadáveres esquisitos” surrealistas. Mas, a longo prazo, esse é também um formalismo um pouco cansativo. De forma geral, acho que há uma tendência, inclusive um perigo, de dar primazia à introspecção. Existe a possibilidade de perdermos de vista nosso compromisso social com uma comunidade com a qual só devemos ter um contato mediado. Estou, por exemplo, fazendo muitas coisas por Zoom e noto que é como falar para o vazio. Não há como perceber a linguagem corporal do público, nem mesmo uma risada quando alguém faz uma piada. Tudo isso dá a impressão que o universo se limita às quatro paredes da casa e que as angústias pessoais são mais importantes que o bem comum. Dentro de alguns anos, saberemos se isso terá um efeito duradouro ou não e quais os efeitos na arte.

Versão de O Museu É uma Escola no Matadero, Madri, em exposição de 2015 (Foto: Divulgação)


Em seu ensaio O Museu É uma Escola, o senhor afirma que a função de uma obra de arte é nos apresentar não apenas algo que não conhecemos, mas também o que não é conhecível. Acha que esse papel é ainda mais importante hoje, quando o mundo, como o conhecíamos, desapareceu?
A arte é útil para especular e explorar tudo sem limites. A sociedade e seus sistemas de ensino nos fazem acreditar que o que importa é saber memorizar o que já se sabe e, depois, ver o que se pode deduzir desse conhecimento. Com a arte, por outro lado, podemos saltar no vazio e viajar por aquele campo que geralmente é descartado como algo negativo e que chamamos de “ignorância”. No entanto, esse campo, bem compreendido, é justamente onde existem coisas que ainda não têm nome e, portanto, são livres. É o que chamamos de “mistério”, uma palavra arruinada pela religião porque tenta manter o mistério encerrado em seus dogmas. Na arte, mistério é algo que nada tem a ver com obscurantismo; é o estímulo que nos faz imaginar continuamente para desvelá-lo. É por isso que a arte é uma metadisciplina do conhecimento e não apenas uma forma de produzir objetos.

Muito se comentou, no início da pandemia, o fato do MoMA-NY e outros grandes museus terem demitido suas equipes do setor educativo, ao invés de treiná-los para migrar as atividades para o on-line. Qual a sua opinião sobre esses episódios? Como adaptaria algumas de suas ideias sobre o papel pedagógico dos museus para o mundo digital?
Este é o momento de reconceitualizar a função dos museus e assumir a responsabilidade de que educar é mais importante do que colecionar. O que a maioria dos museus está tentando fazer é preservar o passado em um formato reduzido e com o mínimo de perdas possível, ao invés de enfrentar o desafio de uma situação sem precedentes em nossa memória, que nos oferece a oportunidade de olhar para essa nova realidade como um marco zero. O que o MoMA fez é reacionário, estúpido e cego, se tentarmos olhar para o futuro. É o momento de reeducar a equipe curatorial para assumir responsabilidades pedagógicas e ampliar sua equipe pedagógica, e não de apagá-la. É hora de redesenhar a comunicação com o público e deixar de ser a única organização centrípeta tradicional para ser igualmente centrífuga, com diálogos criativos de mão dupla. A missão de um museu não deve ser fazer com que o público conheça as obras que tem ou expõe, mas sim ajudar o público a ser um agente criativo, que ajude na construção de uma sociedade melhor.

Entre as iniciativas feitas por museus, nesse período, estão as campanhas colaborativas em redes sociais, como pedidos para que as pessoas reencenassem em suas casas versões de obras de arte conhecidas. Muitas estão reunidas na hashtag #betweenartandquarentine, criada pelo Rijkmuseum, da Holanda, e copiada por outras instituições. Como vê essas iniciativas? Acredita que são válidas como formas de interlocução e tentativa de tornar a arte democrática e coletiva?
A recriação performática de obras de arte produz resultados divertidos, mas conceitualmente isso nada mais é do que um refinamento do consumo de obras de arte, semelhante ao ato de copiar uma pintura famosa. É algo que provavelmente será útil para as relações públicas das instituições, mas duvido que tenha algum impacto na democratização da arte. Pode divertir como espetáculo, mas não acredito que gere novos conhecimentos.

A Bienal do Mercosul foi um dos eventos que precisou cancelar as exposições, levando suas atividades para o espaço digital. A apresentação dos trabalhos não me parece ter funcionado bem na plataforma criada, mas houve um esforço grande de se criar uma programação educativa on-line. Como vê essas transformações depois de ter realizado a curadoria pedagógica na 6ª edição desta bienal, em 2007?
Infelizmente não tive a oportunidade de acompanhar esta Bienal do Mercosul. Sou amigo de Andrea Giunta há muitas décadas e tenho total confiança em seu trabalho. Com esta edição, em particular, a situação era difícil porque a pandemia começou quando a bienal já estava planejada. Mas diria que em geral as bienais estão enfrentando problemas similares aos museus, com a tentação de resgatar os formatos do passado e transferi-los para as telas dos computadores, ao invés de buscar um novo começo a partir da crise. Quanto trabalhei na 6ª Bienal (2006-7) com Gabriel Pérez-Barreiro, tínhamos consciência que o formato tradicional das bienais era obsoleto e tratamos, ainda que timidamente, de criar uma situação relacionada com o conhecimento ao invés do consumo. Enfatizou-se a formulação e solução de problemas, a participação da escola neste processo e a educação pública por parte do público. Quando aceitei o cargo de curador pedagógico, foi com a condição de que a equipe funcionasse permanentemente e não vinculada a cada bienal. A diretoria acatou as condições, mas infelizmente não as cumpriu, e a bienal voltou a depender da boa vontade do curador-chefe em cada uma de suas edições. Algumas bienais, portanto, se preocuparam com a parte pedagógica e outras com o estrelato curatorial. Perdeu-se a continuidade pedagógica e a possibilidade de se adaptar construtivamente às circunstâncias e, assim, minimizar o impacto das crises.

Gostaria que comentasse um pouco sobre o tema da palestra The New Man, que trata da recontextualização dos comentários de Che Guevara sobre arte e sociedade.
Talvez por causa da quarentena comecei a revisar minha própria formação de uma forma introspectiva e encontrei esse texto de ‘Che,’ que foi uma carta escrita ao diretor de um jornal para o qual eu estava trabalhando na época, o semanário uruguaio Marcha. [O texto deu origem ao livro Socialist and Man in Cuba, 1965]. Isso coincidiu com minha preocupação com o isolamento individualista produzido pela quarentena. Já se passaram seis meses. Tirando poucas e cuidadosas interrupções, vivo confinado. É uma espécie de prisão domiciliar. Isso me fez revisar meu conceito de “experiência” e contrapor ao que chamo de “in-periencia”, que é uma forma de usar o interno para processar o externo em forma de militância social. Em tudo isso há convergências e divergências com o que Che mencionou sobre arte e me pareceu um tema interessante para que pessoas mais capazes do que eu elaborem melhor mais tarde. Gostaria muito de poder ler mais material sobre isso.

Em um texto para o catálogo da VI Bienal de Havana (1977), o senhor menciona algo semelhante, sobre o desmantelamento das estruturas comunitárias e a destruição da noção de nós. Como falar sobre isso no atual contexto?
Relendo esse texto, 23 anos depois, parece que a situação é muito pior. Aos poucos, está se instalando o que chamo de “palhaçocracia” nos governos – mas com pessoas medíocres até como palhaços, pois não conseguem fazer ninguém rir. São pessoas que vivem em uma cápsula narcisista e não entendem que existe um “nós”, e que quem está trabalhando em um governo é contratado para alimentá-lo e apoiá-lo. No contexto atual, isso se tornou mais agudo. Estar em situação de quarentena, rompê-la (ou pelo menos não usar máscara), agindo fisicamente sobre o “nós”, é uma forma de contaminar e destruir a comunidade. Ao respeitá-la, ficamos isolados e o “nós” se torna virtual, corre-se o risco de se tornar uma memória nostálgica. A resistência, como escrevi naquela época, está em manter a consciência utópica de sobrevivência, não aceitar a possibilidade de derrota e usar a arte como instrumento de manutenção da saúde mental.