O livro como ponto de encontro Vaivem Rede Paraná (2019), de Gustavo Cabovo (Fotos: Cortesia do artista)

O livro como ponto de encontro

Vencedor do 3º prêmio seLecT de Arte e Educação na categoria Artista, Gustavo Caboco amplifica a voz do povo Wapichana

Nina Rahe

Gustavo Caboco cresceu ouvindo sua mãe, Lucilene, falar sobre a aldeia Canauanim, em Roraima, que pertence à etnia Wapichana. Nascido e criado em Curitiba, ele escutava com curiosidade as histórias de uma infância com igarapés e frutas como a abacaba, onde a pesca era também brincadeira. Entender a trajetória de sua mãe, marcada pelo deslocamento involuntário, causava certo estranhamento, já que Lucilene deixou Canauanim por volta dos dez anos e passou um período em lares provisórios em Boa Vista e Manaus, antes de ser efetivamente adotada por uma família curitibana. “Essa história sempre me deixou confuso, porque, como criança, eu tentava entender como minha avó de Curitiba, mãe da minha mãe, não era minha avó. Sempre tinha uma outra avó, já que minha mãe passou por muitas famílias”, diz Caboco, que, com o tempo, aprendeu que na cultura indígena o conceito de família é estendido: um avô pode ser considerado também pai, uma tia, mãe, e assim por diante.

O percurso de sua mãe, de acordo com o artista, é narrado por ela a partir de uma adoção que aconteceu em 1968, quando Lucilene foi morar com uma família em Boa Vista (RR), antes de ser enviada para outra em Manaus (AM). Ao retomar essa trajetória, no entanto, o artista escolhe não usar apenas uma palavra, afirmando que “ela foi dada, doada, entregue, adotada, raptada”. “Há várias palavras, dependendo da perspectiva que você olha para a história”, diz. “Minha mãe conta como adoção, mas ela foi trabalhar na primeira e na segunda casa. Por isso uso a palavra rapto. Uma criança indígena trabalhando na sua casa. Que tipo de adoção é essa? É um rapto e um desterro”, questiona.

A única adoção que ele considera como legítima é a de seus avós curitibanos, que decidiram criar Lucilene na época em que ainda moravam em Manaus. A adolescente estava na cidade para trabalhar na casa de uma outra família, mas acabou se tornando amiga de escola da filha do casal, que pediu aos pais para que ela se tornasse sua irmã. “Eles realmente acolheram minha mãe e daí, sim, tornaram-se o que as pessoas entendem como família”.

Vaivem Rede Buriti Bananeira (2019), de Gustavo Caboco

Retorno à terra
O início de toda essa história, no entanto, o artista só chegou a conhecer de fato quando sua mãe decidiu, em 2001, após 33 anos sem regressar à aldeia, retornar ao local para apresentar aos filhos a terra onde cresceu. Na viagem, as imagens, até então construídas apenas na imaginação, puderam ir se cristalizando, já que na sua casa não existiam fotografias nem mesmo dos avós biológicos. Caboco tinha apenas 12 anos quando fez a viagem, mas ela representa o princípio de sua pesquisa atual: a tentativa de conexão com suas raízes indígenas. O “retorno à terra” é o nome dado a seu processo de pesquisa e criação, uma tentativa não só de caminhar para as suas origens, como de amplificar a voz do povo Wapichana.

Na infância, o artista se lembra de amigos que zombavam da sua ascendência na escola e de pessoas que banalizavam o discurso de sua mãe. “Por boa parte da minha vida, acabei silenciando essa história, porque não via muito um lugar pra falar. Quando fui à aldeia, consegui entender minhas diferenças tanto do meu contexto, como do contexto da minha mãe”, diz.

O divisor de águas de sua relação com os dois mundos que o habitam foi a participação no Concurso Tamoios de Textos de Escritores Indígenas, em 2018. Ao ter seu texto A Semente do Caboco selecionado, ele se aproximou de outros expoentes indígenas e começou a querer se aprofundar, cada vez mais, na história de seus familiares, entre eles o tio Casimiro Cadete que, em sua visita à aldeia, fez questão de presenteá-lo com um dicionário wapichana. “Eu vivia em contexto deslocado do circuito indígena, sempre estive à margem, inclusive com muita confusão nesse pertencimento. A própria vida cega a gente de entender a nossa história”, diz Caboco.

Gustavo Caboco (2020)

Livro bilíngue português-wapichana
Apesar de ter voltado a Canauanim só uma vez, em 2019, ele mantém proximidade com sua família indígena, principalmente pelo contato com Roseane Cadete, a prima historiadora, neta de Casimiro, que tem sido uma interlocutora nessa pesquisa. O livro Baraaz Kawau, vencedor do 3º Prêmio seLecT de Arte e Educação na categoria Artista, é fruto dessa aproximação. “Queria fazer uma representação da história, mostrando o lugar, a família, como se fosse uma lembrança que pudesse conversar com qualquer tipo de pessoa”, diz o artista, que vê a publicação como uma ferramenta de cultivo à memória. O livro é composto por cerca de 30 desenhos e textos curtos, escritos nas duas línguas – português e wapichana.  “O livro foi feito para o tio Casimiro e para que as pessoas que estão dentro da própria comunidade também se relacionem com essa memória. É um ponto de encontro”, define.

O artista, que também é um dos selecionados para a 34ª Bienal de São Paulo, adiada para 2021 por conta da pandemia, brinca não ter aberto nem metade dos olhos em relação ao aprendizado sobre suas origens. Mas a participação na bienal, segundo ele, deve ser uma continuidade no longo caminho de retorno à terra Wapichana.

O Prêmio seLecT de Arte e Educação é promovido pela revista seLecT desde 2017 com o objetivo de valorizar escolas, instituições de arte, espaços de ensino, projetos artísticos colaborativos e iniciativas inovadoras que favoreçam os diálogos e os vínculos entre arte e educação. A terceira edição teve correalização do Itaú Cultural, apoio da galeria Almeida e Dale, e parceria da galeria A Gentil Carioca e da Arapuru London Dry Gin.

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