O projeto arte livre itinerante é uma escola nômade que estabelece vínculos em diferentes regiões da cidade de São Paulo
Leandro Muniz
Em uma série de reportagens, a seLecT apresenta escolas idealizadas e geridas por artistas nacionais e internacionais, históricos e em atividade. A especificidade desses projetos está na transformação dos modelos de ensino e de trocas, isto é, como os afetos e conhecimentos são transmitidos e como podem gerar novas dinâmicas de organização do espaço ou da economia desses centros de reflexão e prática.
ali (arte livre itinerante)
São Paulo, 2019
Em meio à depressão com a vitória de Jair Bolsonaro como presidente da República, em 2018, e à efervescência cultural e de resistência da Ocupação Nove de Julho, os artistas Ana Prata, André Komatsu, Bruno Dunley, Ding Musa, Lucia Koch, Renata Lucas, Rodrigo Andrade, Sara Ramo, Wagner Morales e o cientista social Gustavo Vidigal passaram a elaborar um projeto de escola com estrutura nômade e flexível. A escolha do nome ali (arte livre itinerante), com letras minúsculas, indica o desejo do projeto de aproximar centro e periferia, assim como as diferentes experiências culturais e econômicas implicadas nesse deslocamento.
“Vários de nós já vínhamos com um pensamento de fazer uma escola. O projeto começou a surgir no grupo Jararaca, que era um grupo político que buscava apresentar propostas para o PT, como alternativa às políticas correntes. Logo depois da eleição nós nos reunimos para articular e projetar uma ideia de escola. Foi uma formação orgânica de pessoas que estavam querendo fazer algo” comenta o artista Bruno Dunley.
A ideia central é que encontros como aulas, slams, festivais e obras produzidas colaborativamente nas ruas dos bairros sejam realizados em um processo de imersão de, pelo menos, dois anos em cada bairro-sede do projeto. O primeiro local a abrigar o ali é Cidade Tiradentes, um bairro-distrito de São Paulo projetado como cidade dormitório nos anos 1980 no qual reside uma população estimada de 220 mil habitantes. A artista Sara Ramo já vinha desenvolvendo projetos em parceria com moradores do local. A CT é um campo fértil de centros culturais auto organizados, coletivos artísticos, com uma cena de grafite que inclusive promove trânsitos internacionais, além de diversos saraus, etc.
Afeto e potencial cultural
Ramo foi uma das responsáveis pela ponte entre os artistas que estavam envolvidos com a cena da Ocupação Nove de Julho e a Cidade Tiradentes. “Cheguei há uns anos, porque tinha amigos de lá, em especial Aline De Fátima, que é artista também. Fizemos alguns projetos juntas e através dela conheci muitos articuladores da cena local como o Tom (Antonio Carlos Guerra) e o Luau Raiz Quadrada, que ele organiza há cerca de seis anos. Eu participava de atividades na Ocupação de forma paralela. Com os jovens da CT, mantinha uma relação de troca, íamos a exposições, peças de teatro, fazíamos reuniões em casa e apresentações de filmes. A Aline dirigiu o filme Lança, que discute o aumento do uso de lança perfume nas periferias da cidade e o Tom é a peça principal do documentário. Minha participação era de apoiadora e ajudava na divulgação, mas fiquei com vontade de apresentar o filme na Ocupação. Nesse mesmo momento, alguns artistas já estavam se reunindo com o desejo de fazer algo na periferia. Sempre tivemos vontade de que fosse na CT tanto por uma questão de afeto quanto pelo potencial cultural do lugar”, complementa a artista.
O jovem Antonio Carlos Guerra atua como um articulador local e um ativista das causas culturais em Cidade Tiradentes. Através do Luau Raiz Quadrada, começou sua relação e atuação com o projeto ali. “No aniversário de cinco anos do luau, alguns artistas vieram e marcamos uma reunião para começar a desenvolver um mapeamento e uma articulação com o local. Comecei a estabelecer uma ponte entre coletivos importantes em Cidade Tiradentes como o Red7, o Pombas Urbanas e outros e o ali. Está sendo incrível, porque todos os coletivos aqui estão começando a se juntar por um objetivo comum de colocar a periferia no mapa. É mais interessante a galera do centro vir pra periferia do que o contrário. Aqui tem um cena cultural muito forte, que deve ter maior recepção e abertura. Semanalmente, nos reunimos para pensar ações, porque existem coletivos aqui que atuam há dez anos. O ali está começando a conhecer a luta agora e pode ajudar dando suporte” diz Tom.
Passaram-se quase doze meses de discussões e experiências de mapeamento de território entre a indignação inicial do grupo com a política nos últimos anos e o processo de implementação real do projeto ali, com suas estruturas burocráticas, equipes e parcerias. Longe de mera aterrissagem em território desconhecido, a chegada do ali a CT é resultado de um processo de articulação e integração com a comunidade, seus coletivos e centros culturais locais.
Contraponto à violência
“Existe uma imagem falsa criada sobre a periferia”, continua Tom. “Aqui existem muitos artistas, festivais. Esse é um dos maiores bairros da América Latina, com uma potência incrível, que deve ser enfatizada. A maioria dos coletivos aqui são independentes, não têm suporte, pouca gente ganha dinheiro, mas estamos trabalhando há muito tempo pelo desejo de ver outra realidade, fazer eventos e criar um contraponto para a violência”, complementa. A CT é um campo cultural rico, que potencializa a ideia central do projeto ali de criar trânsitos e diálogos entre diferentes artistas, com diferentes formações, etnias e classes sociais.
A estrutura da escola busca repensar modelos de aulas e de troca de conhecimentos, na medida em que encontros a céu aberto, aulas de história da arte e oficinas de pintura mural fazem parte de uma mesma dinâmica. Mas a própria estrutura organizacional do projeto tem um aspecto radical: todos os membros da equipe ganham o mesmo cachê, independentemente da função.
“Tem uma coisa bacana no ali, que é o desejo de ser radical na relação entre arte, educação e política”, diz Gustavo Vidigal, um dos idealizadores do projeto. “A gente se inspirou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e na Bauhaus. Pensamos em atuar em bairros periféricos, em diálogo com a situação política do país. CT é um bairro fecundo porque, além da cena cultural rica, historicamente era um bairro de esquerda, que nos últimos anos perdeu para uma extrema direita. Temos posições políticas claras: atuar na periferia, fazer arte com educação, atuar em territórios vulneráveis, criar relações entre artistas e militantes e lutar contra hierarquias”.
Não se trata de um modelo colonizador, no qual o artista vai em uma comunidade impor sua cultura ou extrair elementos da cultura local, com suas evidentes assimetrias de capital simbólico e cultural – algo bem discutido no célebre texto O artista como etnógrafo do crítico norte-americano Hal Foster. Os artistas do ali estão submetidos a mesma dinâmica de aprendizado mútuo e colaboração que estabelecem com os espaços parceiros que abrigam os encontros e os participantes. A estrutura coletiva leva ao aprendizado mútuo e as múltiplas formas de captação e distribuição de recursos – vendas de múltiplos, doações, parcerias com o poder público, assim como com instituições privadas, galerias e colecionadores – faz pensar em outras relações econômicas possíveis.
O ali enfatiza a necessidade de espaços de liberdade em um momento de crise social e política com o qual a arte se vê muitas vezes entrincheirada, pelo mercado, por estruturas institucionais engessadas ou mesmo por uma mera instrumentalização. Arte livre itinerante conjuga o potencial de ser uma escola, um espaço de exposição, pesquisa e oxigenação das ideias de todos os participantes no projeto – alunos, professores, público e passantes. Para além de uma ação pontual e desenraizada, ainda tem o mérito de se pensar a longo prazo, como possibilidade de transformação. Vida longa ao ali!
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